
O movimento que se formou durante a COP30 para incluir nas negociações oficiais um mapa do caminho para o fim dos combustíveis fósseis foi uma surpresa para o presidente da conferência, o embaixador André Corrêa do Lago.
O assunto foi levantado em discursos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com uma intenção “essencialmente política” e adquiriu uma “dimensão meio surpreendente”, afirmou o embaixador ao Reset, se referindo aos 80 países que aderiram à ideia.
Uma onda crescente de apoio para mencionar nas decisões da conferência os grandes responsáveis pela mudança do clima se chocou com a resistência histórica de grandes produtores.
O embate levou a COP30 à beira do precipício. O acordo que salvou a conferência de Belém do colapso foi selado às 8h de sábado (22), depois de uma noite inteira de vaivém diplomático.
Os defensores do mapa do caminho foram vencidos, mas Corrêa do Lago prometeu entregar um documento com ideias sobre o tema até a próxima COP, quando seu mandato chega ao fim. É uma contribuição voluntária, que pode ou não ser incorporada às discussões oficiais.
Isso representa um descolamento entre os esforços de implementação no mundo real e o lento e tortuoso processo das COPs? Para o embaixador, ele talvez já esteja acontecendo – e não é um problema.
“Belém já mostrou que o que estávamos negociando é importante, mas muito menos essencial para a implementação do que as coisas que já foram negociadas antes.”
Corrêa do Lago conversou com o Reset de Brasília, por videochamada, vestindo terno escuro e gravata depois de duas semanas de trajes casuais em Belém.
Estava disposto e bem-humorado e não falou de cansaço. Mas, respondendo a uma pergunta sobre os mapas que vai desenhar no próximo ano, disse que o repórter estaria “querendo tirar meu sono” dos dias em que estará de férias.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Por mais que haja uma agenda esperada, as coisas podem acontecer numa COP, e foi o caso em Belém. Formou-se um movimento pela criação do mapa do caminho para o fim dos combustíveis fósseis. Foi uma surpresa para a presidência?
Você nunca sabe muito bem qual vai ser a reação dos outros países, porque cada um chega preparado para a agenda formal e eventualmente alguns novos direcionamentos.
[O mapa] foi uma provocação do Brasil. Foi o presidente Lula que lançou essa discussão e que tinha, essencialmente, uma intenção política.
E esse tema adquiriu uma dimensão meio surpreendente, que foi a de entrar na agenda. Foi de uma certa forma uma sequência de surpresas.
Alguns países abraçaram a causa sem estarem preparados. E outros países despertaram com certa preocupação com relação à causa. Certamente foi um elemento não previsto, não se previa a dimensão que teve.
O que o senhor quer dizer com países que não estavam prontos para abraçar a causa?
Teoricamente, as COPs chegam com uma agenda. A agenda tinha os elementos já incorporados e aprovados, mas [surgiram] quatro temas que não se conseguiu incorporar e que o Brasil conseguiu, no primeiro dia, criar consultas da presidência, que fizeram com que a agenda como um todo fosse aprovada.
O tema dos fósseis veio depois. Foi um elemento adicional. Ninguém levantou esse tema para colocar na agenda. É um tema trazido pelo Brasil, através dos discursos do presidente.
As negociações só acabaram na manhã de sábado, o sol já tinha raiado. A COP realmente esteve perto do precipício? De colapsar e não entregar um resultado? E o que o senhor pode contar das últimas horas? Mesmo sabendo que não pode revelar muitos detalhes.
Alguns países, de fato, ameaçaram não aprovar o pacote final. E, como você sabe, é por consenso. Um país que não aprova o pacote final significa que a COP não consegue aprovar os documentos previstos.
Às oito da manhã daquele sábado, todos os grupos concordaram com o pacote final. Apesar de uma certa situação durante a plenária final, que revelou, eu acho, que alguns países não entendem muito bem do processo. Porque já tinha sido aprovado. A plenária é apenas a formalização de um pacote que já tinha sido obtido.
A segunda pergunta, sobre momentos de grande emoção, o Brasil criou uma dinâmica em que os países que não estavam de acordo com o pacote deveriam apresentar alternativas.
A União Europeia ficou negociando até 8h, essencialmente com a Arábia Saudita, para conseguir uma menção suficientemente clara de que [o texto] estava falando de fósseis, ao mencionar o Consenso de Dubai.
Com isso, todo mundo estava de acordo. Mas aí, na plenária, aconteceram coisas também um pouco fora de roteiro.
Esse momento da plenária ganhou uma dimensão maior para quem estava acompanhando na hora, pareceu que as coisas iam sair dos trilhos. Mas já havia acontecido no ano anterior. O senhor mencionou que vão fazer um esforço para melhorar essa parte do ritual. O que pode ser feito?
Foi um problema de procedimentos. Porque, se você teve um acordo com os países de que estava fechado, abrir [novamente a discussão] na plenária é uma coisa um pouco estranha.
Uma [coisa] é levantar a mão, depois de aprovado, e dizer que você tem reticências com relação a certas coisas que estão no texto, o que vários países fizeram.
Por exemplo, a Argentina, o Paraguai ou outros, que não concordavam com a maneira como o texto fala de gênero porque, nos seus países, só existe homem, só existe mulher. Esse tipo de comentário fica para registro. É normal, acontece em todas as COPs.
Outra coisa é você levantar uma dúvida sobre o pacote, porque o pacote já estava aprovado. É uma coisa que, digamos, não é o roteiro.
O senhor disse que produziria os mapas do caminho que não entraram na decisão e que tentaria não decepcionar as pessoas frustradas com o resultado da COP. Mas não foi uma encomenda, é uma iniciativa voluntária brasileira. Como esses mapas vão se integrar ao processo formal das COPs?
Primeiro, o país que lançou [a ideia] foi o Brasil. Está cheio de países agora querendo [fazer] parecer que foram eles que lançaram o assunto na COP. Quem lançou o assunto na COP foi o presidente da República, foi o presidente Lula, que fez quatro discursos falando sobre o assunto. Quando eu falo dos decepcionados, inclui a gente, claro, já que a gente propôs.
Segundo, os temas abordados nas COP, como você sabe, têm que entrar numa agenda por consenso. Esse assunto nunca foi levantado para ser colocado na agenda da COP por esses países que estão agora dizendo que são os grandes defensores do assunto. Quem levantou o assunto, reitero, foi o Brasil.
Então, o Brasil, sim, está preparado, porque já fez estudos sobre esse tema e vai continuar desenvolvendo esse tema como um país autônomo. Vamos trazer subsídios para que essa discussão fique mais madura e, em algum momento, seja incorporada dentro das discussões das COP.
Triplicar renováveis é uma ideia que veio da Agência Internacional de Energia, que, inclusive, não é da ONU. Durante anos foi falado e acabou entrando em Dubai [no Balanço Geral do Acordo de Paris].
Quando se reconhece que um certo tema já está maduro, aí eles podem incluir esse tema na agenda ou podem incluir esse tema numa decisão. Então, o que o Brasil vai fazer é continuar desenvolvendo os trabalhos que já está fazendo, pensando nessa questão da transição.
Eles podem ser comparados ao roadmap do financiamento climático entregue em Belém? Quem vai liderar o trabalho? Vai ser um pacote de ideias?
O roadmap de finanças foi assinado por mim e pelo Babayev, o presidente da COP29, porque teve um mandato que pediu isso. No entanto, o documento não foi absorvido pela COP. Ela só tomou nota.
Colocamos muitas coisas que muitos países não necessariamente querem incorporar na discussão. Então, o fato de você ter ou não um mandato não faz muita diferença.
Às vezes, as pessoas acabam virando mais realistas que o rei, de que tem que ter um mandato. Não tem que ter um mandato. O Brasil, como presidência da COP, pode dar essa contribuição.
Quem vai conduzir o trabalho? É o Itamaraty com apoio de outros ministérios?
A presidência brasileira [da COP30].
O mapa de Baku a Belém tem muitas ideias e trata de assuntos que a COP não está pronta para absorver. Muito do que está ali precisa ser lapidado até o final da sua presidência, no ano que vem. E como garantir que esse esforço não se perca depois, a partir de 2027?
Essa, infelizmente, é uma pergunta que eu não posso responder. Mas a gente já tem uma estrutura básica e, sobretudo, a gente tem apoio de muitas instituições. Espero que na primeira metade de janeiro a gente já tenha uma ideia bastante mais precisa de quais vão ser essas etapas.
É muito importante mostrar o que vai dar para entregar até o final de janeiro, de fevereiro, de março, de abril, maio, porque eu acho que criou-se uma expectativa muito grande. A pior coisa seria decepcionar. Temos que determinar, com o Azerbaijão, algumas das direções que a gente sugere nas conclusões.
Já no caso [dos mapas dos fósseis e de desmatamento], quem vai comandar somos nós, a presidência da COP. Teremos uma liberdade muito grande de determinar o ritmo.
Mas eu vou entrar de férias. Obviamente, não entrei de férias durante ano de 2025 e você já está querendo tirar meu sono dos dias que eu vou estar de férias. [risos]
Temos o TFFF, a coalizão aberta do carbono, os roadmaps. São todas iniciativas alinhadas com mais de 30 anos de negociações longas, duras e frustrantes. Elas têm relação com a palavra que o senhor mais tenha usado nos últimos 12 meses, que é implementação. E elas estão fora da COP. O que isso significa para a Convenção do Clima, para o Acordo de Paris, para as COPs, quando vemos esse caminhar paralelo?
A pergunta é muito boa, e tenho duas respostas. Você tem a opção de chegar à conclusão de que o acordo está funcionando e que você já tem muita coisa que você já pode implementar.
Você também tem a outra opção, que alguns preferem, [de questionar]: ‘Como é que a gente está deixando essa implementação sair do controle da convenção?’.
Acontece que o Acordo de Paris e a convenção foram pensados para negociar, não para implementar. Se você botar a implementação dependendo do consenso de 196 países, imagine quando ela vai sair.
Qual vai ser o papel das COPs daqui em diante? É óbvio que ainda tem coisas para negociar. Mas não vai acontecer um descolamento, necessário ou inevitável, entre a implementação e o que se negocia? A gente não deveria prestar mais atenção no ‘mundo real’ e menos nas COPs?
A COP de Belém já mostrou que o que estávamos negociando é importante, mas é muito menos essencial para a implementação do que as coisas que já foram negociadas antes.
Não acho que esse descolamento seja negativo. A questão é a seguinte: quem vai apoiar a implementação? E é nesse sentido que entra aquela ideia brasileira do Conselho de Mudança do Clima. Ou seja, você tem um conselho em que todos os organismos internacionais relacionados à mudança do clima reportam e possam ajudar a implementar.
Isso é uma coisa estrutural das Nações Unidas, que eu acho que só deve andar se ajudar. A última coisa que a gente quer é criar mais uma instância burocrática. Isso realmente é um retrocesso.
Devemos avançar nisso só na medida em que a gente identificar o que está faltando para essa implementação melhorar. E essa evolução também é fora da convenção. Porque o Conselho de Mudança do Clima é essencialmente um órgão de implementação.
Alguns países não querem perder o controle sobre a implementação. Mas acontece que a implementação é voluntária. Se um país quer fazer, sei lá, uma plataforma [para conectar projetos verdes com investidores] e com isso atrair mais investimentos, você não pode impedir.
Participei de muitas entrevistas com você e com a Ana Toni, mas uma das melhores frases suas foi no Roda Viva, no começo do ano. Foi algo como: ‘a convenção e as COPs são quase bizantinas, muito difíceis de entender’. Concordo, porque a cada COP aprendo uma coisa nova.
Eu também, viu? (risos) Não desanime.
Um dos objetivos da presidência brasileira era aproximar a COP das pessoas e melhorar essa comunicação, que sabemos que é um problema. Desse ponto de vista, como o senhor avalia o que aconteceu em Belém?
Acho que aproximou, sim. Vocês estavam lá o dia inteiro e não dependiam só da negociação. Estava acontecendo um bando de coisas. Sociedade civil, empresariado, governos subnacionais… Tinha um movimento enorme.
Do ponto de vista de Brasil, eu acho que foi ótimo. Sinceramente, acho que as pessoas se deram conta de que essa agenda é uma agenda que o Brasil pode aproveitar muito melhor.
A cobertura também criou uma curiosidade por parte do público. Teve oferta e demanda de informações. Vai ser muito interessante a gente ver até que ponto isso vai ser absorvido.
Por exemplo, a Confederação Nacional da Indústria. Eu acho que é um dos maiores vencedores dessa COP, com a SBCOP, uma liderança mundial na área industrial, um setor que é associado a ser muito cuidadoso com relação à mudança do clima. A mesma coisa em agricultura, em outras áreas.
Agora, como é que se mantém vivo? Se a gente conseguir manter esse interesse durante os próximos meses, eu acho que isso vai dar ao Brasil uma vantagem imensa com relação aos outros países.
E no geral, qual sua avaliação da COP? O que se esperava foi entregue, os indicadores de adaptação, o programa de transição justa. Teve este outro item surpresa que não entrou no documento final, mas criou-se um movimento que não vai morrer.
É isso. Avançamos na parte formal, que era aprovar os documentos que mantêm [o Acordo de] Paris vivo. Depois, nós também tivemos a decisão Mutirão. Ela injetou uma grande confiança no processo de Paris, mas também incorporou certos elementos que eram muito delicados, como o comércio, como o financiamento público, como a falta de cumprimento da meta de temperatura.
Conseguimos também a demonstração de que a participação do setor privado era essencial e foi essencial. Tivemos o envolvimento de setores que, às vezes, não estão tão envolvidos. Houve uma participação inédita em matéria de seguros. E a questão de seguro vai ter um impacto gigantesco sobre investimentos relacionados à mudança do clima.
Aí você teve avanços muito interessantes, alternativas de pensamento de políticas de mudança do clima, na área de florestas, os economistas, por exemplo, tiveram contribuições muito importantes, cidades tiveram contribuições muito importantes.
Gostaria que o GGA [Objetivo Global de Adaptação] tivesse sido um pouco mais ambicioso. O financiamento de adaptação ficou muito bom. Acho que a gente ter conseguido criar o mecanismo de transição justa também foi uma coisa que não era dada e que era a coisa que mais preocupava a sociedade civil internacional.
E, como você disse, o tema que chegou tarde acabou virando central, porque havia um vácuo. Adaptação e transição justa não são tão claros para o público em geral quanto a transição para o fim dos fósseis.
O tema dos fósseis conquistou um espaço totalmente legítimo, tendo em vista que mais de 70% das emissões vêm de fósseis. Aquela surpresa mundial de estar há 30 anos discutindo um [problema] que precisa de uma alteração nos fósseis sem poder pronunciar a palavra fósseis. Isso foi uma vitória extraordinária, e é uma vitória política do presidente Lula.
Ficou muito claro que existem coisas que dá para fazer com as regras que já existem.