O projeto que usa blockchain para criar armazém global de créditos de carbono

Um plano do Banco Mundial baseado na tecnologia das criptomoedas pretende criar uma câmara de compensação global para créditos de carbono

O projeto que usa blockchain para criar armazém global de créditos de carbono
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Era inevitável: blockchain para combater a mudança climática. Mas não torça o nariz nem abandone esta reportagem ainda.

Um plano do Banco Mundial baseado na tecnologia por trás das criptomoedas vai tentar resolver alguns dos problemas mais relevantes no nascente mercado global de créditos de carbono.

E não se trata simplesmente de “temperar o projeto com blockchain” para fazê-lo parecer mais sexy, como diz Gene Hoffman, CEO da Chia Network, empresa responsável pela parte tecnológica da iniciativa.

Uma estrutura central, mas descentralizada, pode ser a maneira mais lógica e eficiente para a criação de uma espécie de câmara de compensação global de créditos de carbono. E, sim, o consumo energético está sendo levado em conta. (Explicamos já.)

Embora em tese o sistema possa ser útil em toda e qualquer transação de créditos de carbono, a aplicação natural seria nas negociações dentro do esquema do Acordo de Paris.

A conciliação contábil dos orçamentos nacionais de CO2 foi um dos grandes entraves do Artigo 6. Na COP26, depois de seis anos, os negociadores finalmente chegaram a um consenso sobre a proibição da contagem dupla dos créditos.

De forma bastante resumida, eis o problema: a Holanda financia um projeto de energia limpa em Honduras. Os holandeses ajudam um país pobre a lidar com a mudança climática e, em troca, abatem das suas emissões (a chamada NDC).

Essa mesma redução de emissões obviamente não pode ser descontada do orçamento dos hondurenhos, e isso foi pacificado em Glasgow.

Mas ainda há detalhes técnicos a resolver, entre eles um muito importante: como será feito esse controle internacional? Como garantir que a contabilidade de fato reflita esses créditos e débitos?

Aí é que entra a ideia do Climate Warehouse, o experimento com blockchain em desenvolvimento pelo Banco Mundial. Depois de duas etapas de teste, uma versão de demonstração foi disponibilizada ontem.

Caso seja bem sucedido, o projeto pode não só dar escala e abrangência verdadeiramente globais para o mercado de carbono como também provar a utilidade prática dessa nova tecnologia além das criptomoedas e do hype das NFTs.

Sem dono

Uma boa maneira de entender o blockchain é pensar numa transação bancária típica. Imagine que José tem R$ 10 na conta e fez um Pix de R$ 5 para Maria. Para simplificar, eles são correntistas do mesmo banco.

Os R$ 5 saem da conta dele e caem na dela. O saldo de José agora é de R$ 5 e está registrado na base de dados do banco. Se ele quiser gastar R$ 10, só aquela instituição poderá confirmar que José não tem saldo suficiente.

Num blockchain, esse “livro contábil” é descentralizado, público e vive em computadores espalhados pelo mundo. Se João quiser vender um bem para José por R$ 10, a informação de que ele não tem dinheiro para pagar a compra será confirmada pelo próprio sistema, sem a necessidade de verificação por nenhuma entidade única.

Troque as pessoas por países e os valores por créditos de carbono, e essa é em linhas gerais a ideia central do Climate Warehouse.

Essa estrutura central traz algumas vantagens. A primeira é que não existe um único dono e, portanto, ela fica livre da desconfiança que permeia as negociações internacionais.

Outro ponto fundamental é a segurança. O blockchain é essencialmente imutável. Uma vez comprados pelos holandeses, os créditos hondurenhos sumirão da conta dos hondurenhos. O balanço geral do CO2 do planeta, a meta maior do Acordo de Paris, se mantém íntegro.

Quando a Chia Network foi procurada pelo Banco Mundial, a reação inicial foi de ceticismo, diz Hoffman ao Reset. “Mas, quando começamos a entender o que eles queriam, percebemos que era um problema perfeito para um blockchain.”

Em testes

O projeto está em fase de testes. A liderança é de Cingapura, país pioneiro no uso da cripto tecnologia, e participam também México, Chile, Costa Rica e Suíça. A ideia é que outros participantes sejam incluídos em rodadas de testes futuras.

Em princípio, o sistema vai cuidar somente das conciliações dessas negociações entre países.

A compra e venda dos resultados de mitigações, como são chamados os créditos de carbono dentro do esquema do Acordo de Paris, pode acontecer em outra plataforma. O importante é que elas sejam refletidas nesse livro-caixa global.

A Chia está cuidando da parte técnica sem cobrar nada. Uma das possíveis receitas que a companhia pode ter no futuro é a venda de serviços técnicos para ajudar países a integrar seus registros nacionais no blockchain.

“Alguns países pequenos fazem o controle de suas emissões de CO2 em planilhas de Excel”, afirma Hoffman.

A adesão será voluntária, e não há garantias de que o sistema se torne o ambiente padrão de compensações. Mas uma das expectativas é que, como se trata de uma rede dispersa, sem uma localização geográfica ou um dono, ao menos diferenças geopolíticas não sejam um grande obstáculo.

A conta de luz

Querer ajudar a resolver o desafio da mudança climática usando um sistema notório pelo consumo descomunal de eletricidade levanta questionamentos automáticos quando se fala da iniciativa.

É preciso entender que existem diferentes blockchains, baseados em diferentes princípios tecnológicos.

O mais famoso, que deu origem à revolução das criptomoedas, é o do Bitcoin. Este é reconhecidamente um buraco negro de energia. 

Sem entrar em detalhes técnicos, a tecnologia da Chia permite fazer a mesma coisa, com o mesmo nível de segurança, usando um seiscentésimo (1/600) da eletricidade do Bitcoin, afirma Hoffman.

Esse foi um dos motivos que levaram o Banco Mundial a optar pela Chia, startup fundada há pouco menos de cinco anos em San Francisco. 

Bram Cohen, o cérebro por trás das inovações da Chia, é uma lenda viva entre os piratas da internet: ele inventou o BitTorrent.

A empresa já recebeu US$ 70 milhões em investimentos de risco e tem a intenção anunciada de abrir o capital no futuro próximo.

Os mercados voluntários

Hoffman afirma que as transações do mercado voluntário – aquelas em que uma empresa compra créditos para compensar suas emissões – também podem tirar proveito do Climate Warehouse.

“Imagine que a [petroleira] ExxonMobil compre offsets. Essa informação estará registrada e será pública. Você pode conferir quais foram os créditos comprados, de que projetos e assim por diante.”

Mas não está certo se este uso no mercado primário será tão relevante, pelo menos por enquanto. “Gostamos de dizer que, no nosso caso, o blockchain é uma solução procurando um problema”, diz Luciano Corrêa da Fonseca, co-CEO da Carbonext.

A empresa desenvolve projetos de preservação de florestas e vende os créditos gerados para companhias que queiram fazer o offsetting.

Essa câmara de compensação global fará sentido quando houver um grande mercado secundário para esses créditos – eles serão uma commodity como outra qualquer, afinal.

Mas, hoje, a demanda é tão grande que imediatamente depois da venda os créditos são aposentados, ou seja, saem de circulação. Na prática, o risco de dupla contagem é inexistente, afirma Fonseca. 

O piloto do Banco Mundial inclui a americana Verra e a suíça Gold Standard, duas das maiores certificadoras de créditos do mundo e parte-chave do mercado voluntário.

Hoffman acredita que essas transações também tendem a ser refletidas no blockchain, pois os compradores exigirão as garantias intrínsecas de segurança e inviolabilidade da tecnologia.