ANÁLISE: A agenda climática ‘transversal’ está desenhada. Agora é preciso cumpri-la

Vai caber a Lula cobrar de seus ministros a implementação das políticas ambiciosas para acabar com o desmatamento e descarbonizar a economia brasileira

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva em foto oficial com os integrantes do seu ministério
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Marina Silva voltou ao comando do rebatizado Ministério do Meio Ambiente e Mudança Climática. A sigla, MMA, será a mesma, disse ela, mas o trabalho e as expectativas têm outra ordem de grandeza em comparação com sua primeira passagem pelo cargo, há 15 anos.

O fato de a cerimônia ter sido a mais disputada do novo governo é um indicador da importância e do prestígio da agenda ambiental. Centenas de pessoas lotaram um espaço montado no Palácio do Planalto para ouvir as primeiras declarações oficiais da ministra.

Mas os mais atentos notaram que os assuntos mencionados por Silva já tinham aparecido nos discursos de vários de seus colegas ao longo desta semana.

A promessa é que proteção ambiental, transição energética e descarbonização sejam tarefas de toda a Esplanada dos Ministérios.

Certamente foi o caso dos discursos inaugurais dos novos ministros, e algumas das primeiras medidas anunciadas pela nova gestão indicam a “transversalidade”, como gosta de dizer Marina Silva.  

Ela também anunciou a criação de um conselho sobre mudança do clima, que será liderado pelo próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva e terá a participação de todos os ministérios.

“Quem tem 100% do poder de convocação é o presidente da República. Ele deu um comando, e todos nós estamos trabalhando.”

Será necessário aguardar as primeiras iniciativas concretas, e o destaque dado a tudo o que diz respeito ao clima vai gerar inevitáveis ciumeiras e bolas divididas.

Mas, depois de quatro anos em que o assunto foi essencialmente ignorado na esfera federal, melhor sobrar do que faltar.

Reconstrução

Marina Silva leu a maior porção de seu discurso. Foi uma fala burocrática, no sentido literal do termo: ela passou boa parte do tempo listando tudo o que o MMA vai voltar a fazer depois dos quatro anos em que “boiadas se passaram no lugar onde deveriam passar apenas políticas de proteção ambiental”.

Será criada uma secretaria extraordinária de controle do desmatamento. A qualificação “extraordinária”, segundo a ministra, foi feita porque a função deixará de existir quando for atingida a meta de desmatamento zero.

“Esse secretário sabe que [sua] taxa de sucesso será medida no dia em que o presidente Lula extinguir a secretaria. Vamos trabalhar para que ele perca esse emprego, certo?”

Silva também mencionou a criação de uma área dedicada à bioeconomia, um de seus temas prediletos e que será um teste da coordenação com outros ministérios.

Uma das ambições declaradas do novo governo é criar uma economia vigorosa baseada na biodiversidade brasileira. Para isso, há inúmeros obstáculos a superar: desde a geração de conhecimento local aos gargalos de infraestrutura que exigem abnegação heroica dos empreendedores que se arriscam a fazer negócios na floresta.

Sobre a esperada Autoridade Nacional de Segurança Climática houve poucas novidades. Silva disse que um desenho desse órgão será enviado ao Congresso até o final de abril.

Ainda não se sabe exatamente quais serão as atribuições desse novo órgão. Durante a campanha, ele foi descrito como uma espécie de “Banco Central” para acompanhar os compromissos climáticos assumidos pelo país.

Silva disse que a autoridade vai “regular e monitorar a implementação de ações da política nacional do clima”, incluindo planos e metas setoriais.

Apesar de o desmatamento responder pela maioria das emissões de CO2 brasileiras, a descarbonização da economia também é um assunto urgente.

A União Europeia anunciou mês passado um acordo histórico para sobretaxar produtos importados que “embutam” emissões de gases de efeito estufa e também vai impedir a importação de commodities associadas à destruição de florestas.

Supõe-se que essa Autoridade Climática, dentro do MMA mas trabalhando com outros ministérios, seja responsável por estabelecer as políticas que garantam a competitividade das exportações brasileiras – caso as próprias empresas já não o façam por conta própria.

Para dentro e para fora

O trabalho de Marina Silva será determinante para que o país tenha o que mostrar perante o mundo nas próximas COPs.

Sem resultados, o novo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, não poderá realizar a ambição declarada de ser um “facilitador e gerador de consenso” na cada vez mais renhida diplomacia internacional do clima.

Vieira também afirmou o óbvio, mas que pareceu ignorado nos últimos quatro anos: tornar-se uma economia de baixo carbono vai exigir investimentos – que muitas vezes terão de ser cobrados dos países ricos –, mas também vai aumentar a atratividade do país para os investidores internacionais.

Um dos primeiros sinais, segundo Vieira, será a cúpula dos países amazônicos, prometida por Lula em seu discurso na COP27, em novembro passado. A reunião será elaborada “com grande atenção”, disse o novo chanceler.

O maior responsável pela destruição dos biomas brasileiros é a atividade agrícola. Carlos Fávaro, que assumiu o Ministério da Agricultura, falou em abrir as portas para o crescimento sustentável da produção brasileira.

“Temos 30 [milhões], talvez 40 milhões de hectares de pastagens degradadas” que podem ser utilizadas para a produção de alimentos.

“Vamos nos engajar num grande programa de crescimento da ordem talvez de 5% ao ano do incremento [de áreas recuperadas], o que significa que em 20 anos dobraremos a área plantada brasileira sem derrubar uma árvore sequer.”

Como ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, o vice-presidente, Geraldo Alckmin, vai supervisionar uma nova secretaria responsável por economia verde, descarbonização e bioindústria.

Até mesmo Fernando Haddad, da Fazenda, conseguiu encaixar no final de seu primeiro pronunciamento como ministro uma menção ao “enorme potencial brasileiro de gerar novas energias, como a eólica, a solar, a do hidrogênio e a oceânica”.

Sinais contraditórios

A nota discordante nos discursos de apresentação do primeiro escalão foi um trecho da fala do ministro das Minas e Energia, Alexandre Silveira.

Em meio a promessas esperadas de manter a segurança jurídica e de lutar para baixar os preços das contas de luz, Silveira afirmou que uma de suas missões é garantir o suprimento de eletricidade “limpa e sustentável”.

A transição energética segura e a consolidação de uma economia de médio e baixo carbono vai passar pelo aumento do uso da biomassa e do gás natural, afirmou o novo ministro.

Ele não deu detalhes do uso pretendido para o gás natural, mas a queima desse combustível fóssil em usinas termelétricas foi responsável por um aumento de 12,2% das emissões de CO2 do setor energético no ano passado.

Parte desse crescimento se explica pela retomada da economia, mas o uso do gás natural pode manchar uma das principais credenciais do país, que é justamente uma matriz dominada por fontes renováveis.

A extensão dos subsídios à gasolina, mesmo que por apenas dois meses, também vai de encontro ao que disse Silveira sobre “revalorizar os nossos biocombustíveis”.

Ele afirmou que é importante dar previsibilidade para a indústria com uma política mais clara em relação às misturas obrigatórias.

Mas a desoneração da gasolina vai causar prejuízos de R$ 3 bilhões aos produtores de etanol, segundo a associação que representa a indústria.

A transformação imposta pela emergência climática depende de um equilíbrio delicado, que envolve interesses econômicos poderosos, demandas da sociedade e também de um stakeholder que não tem voz, mas que vem se pronunciando de maneira inequívoca: a natureza.

Manobrar essas forças, que muitas vezes puxam para lados opostos, vai exigir habilidade política e também realismo – a mudança climática pode ser o maior desafio da história da humanidade, mas existem outros problemas imediatos com os quais o governo tem de se preocupar, como a fome.

As intenções estão anunciadas. Vai caber ao comandante da embarcação garantir que todos remem em sincronia e no mesmo sentido.