ESPECIAL: O plano da JBS para uma pecuária livre de desmatamento – e os obstáculos no percurso

Maior frigorífico do mundo quer ter o rastreio completo da cadeia de fornecedores até 2026, mas base de dados é um dos desafios

ESPECIAL: O plano da JBS para uma pecuária livre de desmatamento – e os obstáculos no percurso
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Maior frigorífico de carne bovina do mundo, a JBS enfrenta escrutínio crescente não só de ambientalistas, mas também de investidores e clientes quando o assunto é desmatamento associado à pecuária em sua cadeia de fornecimento. Especialmente na Amazônia, a abertura de pastagens para a criação de animais é um dos grandes vetores da derrubada da floresta.

A resposta da companhia para tentar sair da defensiva e, principalmente, se preparar para a realidade cada vez mais presente das exigências comerciais de produtos livres de desmatamento começou a ser dada nos últimos dois anos.

Primeiro com um projeto de rastreio dos fornecedores e depois com o compromisso de ter uma cadeia de suprimentos inteiramente livre de desmatamento a partir de 1º de janeiro de 2026.

As promessas de zerar o desmatamento feitas pelos frigoríficos, de modo geral, são recebidas com ceticismo. E não sem motivo. Alcançar esse objetivo significa atacar um problema que é considerado o ponto cego da pecuária e para o qual ninguém encontrou uma solução até hoje: o rastreio dos chamados fornecedores indiretos.

Antes de chegar ao abatedouro, o boi pode passar por quatro ou cinco fazendas diferentes. Ter acesso às informações de potencialmente dezenas de milhares de elos da cadeia é um trabalho cheio de complexidades. 

No caso específico da JBS, convencer a opinião pública da seriedade de suas promessas significa também vencer a mácula deixada em sua credibilidade pelos escândalos de corrupção em série revelados por operações da Polícia Federal no passado recente.

Parte do esforço para lustrar suas credenciais tem passado pela contratação de profissionais com reputação no mundo da sustentabilidade, do setor privado e também de órgãos públicos.

Há menos de um ano a companhia recrutou para o cargo de diretor de sustentabilidade no Brasil Mauricio Bauer, vindo diretamente dos quadros da ONG WWF em Washington, onde respondia pela diretoria de cadeia de suprimentos de carne e couro. 

Em outubro foi a vez de anunciar como Chief Sustainability Officer global Jason Weller, profissional com conhecimento em projetos de sequestro de carbono e redução de emissões na cadeia de valor e ex-chefe de serviços de conservação de recursos naturais do USDA, o departamento de agricultura do governo americano.

Os executivos dizem enxergar na JBS a oportunidade de combater as mudanças climáticas na prática – e em escala. “Pelo seu tamanho, não tem como resolver o rastreio da cadeia de bovinos sem a JBS”, diz Bauer.  “A descarbonização da nossa cadeia vai ser crucial para descarbonizar o setor.”

Do discurso à prática

Numa grande tela na sede da JBS, em São Paulo, Alexandre Kavati, gerente de sustentabilidade da marca Friboi, vai sobrepondo às fotos de satélite da Amazônia diversas camadas coloridas. Cada uma delas representa uma potencial restrição aos fornecedores do frigorífico.

O sistema de rastreamento georreferenciado fornecido pela Agrotools, que cruza diversas bases públicas de dados, de trabalho escravo e crimes hediondos a desmatamento, é semelhante ao usado por outras grandes empresas de commodities agropecuárias.

É esse enorme ‘big brother’ do campo, com dados atualizados diariamente, que procura assegurar que todas as fazendas que vendem diretamente para o frigorífico não têm irregularidades socioambientais.

Todos os 87 mil fornecedores diretos cadastrados pela companhia no Brasil têm suas propriedades monitoradas diariamente e cerca de 15 mil deles estão bloqueados. Ou seja, não podem vender gado à companhia por irregularidades variadas. 

“Mas 90% dos bloqueios estão relacionados a desmatamento”, diz Liège Correia, diretora de sustentabilidade da Friboi. 

No caso do desmatamento, o sistema se abastece das imagens do programa Prodes, do INPE, que monitora por satélite a Amazônia Legal e consegue detectar se determinada área teve a vegetação suprimida de um dia para o outro.

A informação é binária e, a partir dela, a JBS automaticamente bloqueia preventivamente aquela propriedade.  “Depois verificamos se o desmatamento é uma supressão vegetal autorizada pelo código florestal ou não. Se for ilegal, o fornecedor é bloqueado no sistema”, diz Correia. 

Ainda assim, isso não impede que vira e mexe o frigorífico seja acusado de comprar gado proveniente de áreas desmatadas. E por duas razões principais.

Primeiro porque o sistema libera a compra do gado de acordo com o monitoramento na data da transação. “Mas acontece de uma fazenda liberada hoje ser bloqueada amanhã e vice-versa. Então, uma fazenda de quem compramos gado hoje pode aparecer envolvida em um incêndio um ano depois”, diz a executiva.

Segundo porque o conhecido ponto cego dos fornecedores indiretos continua sendo… cego.

Mas a JBS diz ter encontrado um caminho para, dentro de poucos anos, conseguir enxergar além da fronteira das fazendas de quem compra diretamente.

O problema dos indiretos

O coração do plano é um programa que atende pelo auspicioso nome de Pecuária Transparente, que começou a ser implantado no primeiro semestre de 2021. Ele trata justamente de ter acesso às informações de todas as fazendas com as quais a companhia não se relaciona diretamente, mas por onde o boi que ela abate passou em algum momento desde o nascimento.

A solução envolve convencer os fazendeiros que fazem negócio diretamente com a companhia a cobrar dos seus fornecedores a mesma transparência que lhes é exigida pelo frigorífico.

Para isso, a JBS colocou uma espada sobre a cabeça de todos eles: informou que, a partir de 2026, só comprará gado daqueles que estiverem cadastrados no portal do programa Pecuária Transparente.

Se cadastrar no portal significa trazer para dentro da ferramenta as informações dos seus próprios fornecedores. E assim sucessivamente.

“Com isso, o nosso fornecedor consegue dizer para o fornecedor dele: a partir de janeiro de 2026, se eu não regularizar a sua propriedade, ou eu não vou fornecer mais pra JBS ou eu não vou mais comprar de você”, diz a executiva, que responde pela implantação da plataforma. 

Uma vez dentro do portal, o mesmo sistema ‘big brother’ da Agrotools é que faz todas as verificações de conformidade ambiental e social.

Mas a dificuldade do processo está mesmo em conseguir trazer essas informações – e em como tratá-las.

As informações essenciais são extraídas principalmente de dois documentos oficiais: o cadastro ambiental rural, ou CAR, registro obrigatório para todas as propriedades rurais com o objetivo de unificar todas as informações ambientais; e a as guias de transporte animal, ou GTA, documento sanitário obrigatório para o transporte de animais entre municípios e Estados.

O CAR é sempre o ponto de partida para o monitoramento de qualquer fornecedor, seja ele direto ou indireto, porque é ele que traz os limites georreferenciados de cada propriedade. O fornecedor direto da JBS tem que cadastrar na plataforma o CAR de cada um dos seus próprios fornecedores.

Ao mesmo tempo, ele assina um termo em que se compromete a abrir a chamada chave de GTA. “Essa chave informa todo mundo de quem ele comprou e para quem ele vendeu”, explica Correia. Ou seja, é o que garante que o produtor entregou a lista completa dos seus fornecedores e não omitiu parte deles.

O problema é que a GTA registra não só as fazendas de origem e o destino (outra fazenda ou abatedouro), mas também o número de cabeças de gado transportadas. Ou seja, é o controle de estoque do produtor e, por essa razão, é tratada como segredo comercial pelos pecuaristas. Em tese, sua abertura completa daria aos frigoríficos mais poder na negociação de preços. 

A tecnologia de blockchain foi integrada ao sistema justamente para garantir a confidencialidade das informações e tentar vencer a resistência ao compartilhamento. (Mais que isso, a JBS diz que a plataforma toda só foi viabilizada agora por conta da existência dessa tecnologia, que anos atrás não estava disponível).

Os fornecedores cadastram os documentos na plataforma, e o sistema aponta onde estão os problemas.

A partir daí, o fornecedor direto tem condições de agir em sua própria cadeia de surprimento. 

A JBS oferece ajuda nessa etapa, como se verá mais adiante, mas diz não enxergar quais são e em que fazendas estão os entraves. Nas telas das equipes de compras do frigorífico, as cadeias são simplesmente sinalizadas com uma luz verde (tudo OK) ou então vermelha (pendências a resolver).

Os limites da plataforma

Há ao menos duas limitações nesse sistema, que podem impedir que a JBS atinja o objetivo declarado de desmatamento zero associado a seus produtos. 

O primeiro diz respeito à confiabilidade dos dados que são a base de todo o sistema. 

A questão é que o CAR é um documento autodeclaratório, em que o registro é feito pelo próprio dono ou arrendatário da terra. Uma vez feito o registro, as informações precisam ser verificadas pelas autoridades ambientais dos Estados – e numa terceira etapa essa verificação ainda tem que ser aceita pelo proprietário. 

Apesar de o sistema existir há mais de uma década, apenas 2% dos CARs do país já passaram pelo processo completo de validação. Ou seja, toda a verificação da conformidade socioambiental está baseada em um registro que não é 100% à prova de bala.

E esse é um problema que afeta todos os frigoríficos e traders de grãos do país, não é exclusivo da JBS – e nem pode ser resolvido por ela.

“Conversamos recentemente com o pessoal de Rondônia. Eles tinham 157 mil registros para avaliar [o trabalho é feito manualmente]. Em dez anos, tinham conseguido fazer 6 mil”, afirma Correia.

A outra limitação diz respeito à capacidade da empresa de engajar absolutamente todos os elos da cadeia em sua plataforma.

Num exemplo hipotético, um fornecedor direto pode receber sinal verde porque todos os fornecedores diretos dele estão em conformidade socioambiental e ainda assim pode persistir um produtor num elo mais distante da cadeia que está irregular, mas não foi detectado.  

Liège Correia diz que a lógica do sistema é conseguir engajar cada elo na plataforma, mas admite que, no limite, esse ‘furo’ pode existir. 

“Mas temos estudos, inclusive feitos por ONGs, que demonstram que 90% do desmatamento está nesse primeiro grupo (a primeira camada de fornecedores indiretos da JBS), que é o elo que queremos enxergar”, diz ela. “Então, o risco começa a ficar muito baixo. Claro que a ambição é ter a cadeia inteira aqui dentro.”

Hoje no país existem cerca de 174 milhões de hectares com pasto. Desses, a JBS tem 92 milhões de hectares monitorados. A empresa avança no monitoramento dos indiretos, mas ainda não consegue prever qual será a extensão da área coberta pelo sistema.

“Nos elos mais distantes da cadeia, o que há são pequenos produtores de bezerro, com propriedades de 5 hectares, de 10 hectares, em que pode ter desmatamento, mas que no todo são pouco representativas.” 

Ainda assim, a executiva diz que o grupo tem desenvolvido alguns programas de cunho social para ajudar na regularização socioambiental dos pequenos produtores. Um exemplo é um projeto de pecuária de cria com recursos do Fundo JBS para a Amazônia. Outro é um programa com o instituto IDH para conseguir identificar individualmente bezerros no campo. 

Regularização

Depois de assumir o compromisso de desmatamento zero a partir de 2026 e também o de se tornar net zero em 2040, a JBS se deu conta de que o modelo de simplesmente bloquear fornecedores irregulares não seria sustentável a longo prazo. 

“Se bloqueamos um produtor, ele vende para outro frigorífico que não está olhando para esses mesmos critérios”, diz Correia. Até para conseguir engajar os demais elos da cadeia, afirma ela, é preciso ajudar o produtor na regularização. 

Para isso foram criados os Escritórios Verdes, que prestam apoio técnico aos pecuaristas. Assim, quando um fornecedor recebe luz vermelha na plataforma Pecuária Transparente, é orientado a encaminhar seus fornecedores indiretos a um desses escritórios. “Uma vez que chegue a um Escritório Verde, esse indireto também tem que entrar na plataforma e passar a ser monitorado”, diz ela.

Montados dentro das unidades regionais da JBS, esses serviços fazem o diagnóstico e trabalham com mais de 50 consultorias locais para adequar as propriedades à lei ambiental. Com os três novos que devem ser inaugurados este ano, o total vai chegar a 20. 

Os produtores pequenos e médios raramente têm dinheiro para voltar à legalidade. Em alguns casos, a JBS arca com os custos das consultorias, que definem um projeto de regularização.

Em outros, a empresa faz a ponte com bancos para que o produtor obtenha o financiamento para implementar o projeto de regularização, que pode incluir ações como cercar a propriedade e reflorestar áreas desmatadas. 

Segundo a empresa, em pouco mais de um ano de atividade, os escritórios regularizaram quase 3.600 propriedades.

O diretor de sustentabilidade da JBS no Brasil, Mauricio Bauer, argumenta que a atuação na ponta é importante por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque muitos desses fornecedores indiretos também fazem negócios diretamente com a JBS.

Além disso, a ação também beneficia os frigoríficos concorrentes, pois não existem relações de exclusividade no campo.

“Da mesma forma, o barco não afunda de um lado só”, diz Bauer. “Se o Estado do Pará fecha por alguma irregularidade, fecha para todo mundo, não só para a gente. O problema da sustentabilidade é de todos e não tem nada a ver com vender picanha ou contra-filé.”

O Brasil abate 44 milhões de cabeças de gado por ano, e, embora seja a maior empresa do setor, a JBS contribui com menos de 15% desse total (a companhia não divulga dados precisos de abate). Os números deixam claro que, se o combate ao desmatamento não for sistêmico e não envolver frigoríficos de todos os portes, além de políticas de governos, sempre haverá pontos de escape para a pecuária irregular porque, como diz um velho ditado, o boi não morre de velho no pasto.

O progresso

A JBS diz ter conseguido alcançar em 2022 a meta de levar para dentro da plataforma Pecuária Transparente os produtores responsáveis por 36% do seu abate. A ideia é chegar a 57% este ano, 79% em 2024 e 100% ao final de 2025. 

Por ora, os produtores com problemas em sua cadeia de fornecimento ainda não estão sendo bloqueados. As suspensões por conta dos indiretos só virão mesmo em janeiro de 2026. 

Liège Correia diz que, quanto mais a empresa avançar no percentual, mais difícil ficará a tarefa. “Das 87 mil propriedades [cadastradas como fornecedoras], mil respondem por metade do nosso volume de abate.” Essas, explica, são as fazendas maiores, com mais sistemas de controle e, não por outra razão, são as primeiras a aderir ao programa. 

Agora, portanto, começa a parte mais complicada – e que será determinante tanto para o cumprimento dos compromissos internacionais de desmatamento zero assumidos pela companhia na COP26, em Glasgow, como para sua ambição de atingir o net zero em emissões de gases de efeito estufa em 2040.