Se a nova regra da União Europeia que proíbe a comercialização de produtos agrícolas associados ao desmatamento entrar em vigor do jeito que está, o cafezinho dos produtores brasileiros pode ficar amargo.
Uma das principais commodities exportadas pelo Brasil, o café está na lista de sete culturas que poderão ser barradas nos 27 países do bloco europeu a partir de 30 de dezembro de 2024, quando passa a valer o Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento (EUDR, na sigla em inglês).
Produtores de borracha, carne bovina, cacau, madeira, óleo de palma e soja também terão de comprovar para os importadores do bloco que sua produção não teve origem em áreas desmatadas desde 31 de dezembro de 2020.
O café é a cultura brasileira mais próxima de cumprir a nova legislação, segundo pesquisa do Instituto Internacional para Sustentabilidade, publicada na revista acadêmica Ecological Economics, em março.
Entre 2005 e 2018, a relação entre a área desmatada relacionada à produção de café e a área total de cultivo foi de apenas 0,1%, ainda de acordo com o estudo.
Mas a aproximação da vigência da nova lei preocupa o setor cafeeiro no Brasil pela representatividade da União Europeia nas exportações da commodity e pelas incertezas que persistem sobre a implementação da regra.
Na safra 2023/24, o Brasil enviou 21,2 milhões de sacas de café para a UE, volume correspondente a 45% de toda a exportação da commodity brasileira no período, segundo dados do Conselho dos Exportadores de Café do Brasil (Cecafé), que reúne a maioria das cooperativas exportadoras.
Dos dez países que mais compraram café do Brasil no período, seis pertencem ao bloco.
Por essa razão, os embarques do café brasileiro estão em ritmo acelerado, situação que deve continuar até meados de outubro, segundo o presidente do conselho deliberativo do Cecafé, Márcio Cândido Ferreira.
“Qualquer café que você embarca até a primeira quinzena de outubro via de regra chega [na Europa] antes do dia 1º de janeiro”, afirmou Ferreira em entrevista coletiva.
Reflexos pela cadeia
A nova regra europeia regula as atividades dos importadores de commodities agrícolas. Eles terão de provar que não estão comprando produtos associados ao desmatamento.
Mas essa obrigação reverbera por toda a cadeia de fornecimento, chegando até o produtor.
A lei indica que os importadores devem recolher informações dos produtos, ou seja, na prática,eles têm de ser abastecidos por dados fornecidos pelos exportadores.
São requeridos os dados do fornecedor, a descrição e quantidade dos produtos adquiridos, o país de produção e a geolocalização do local de produção (se for em diferentes partes de um terreno, incluir todas, por exemplo).
Mas a lei não padroniza a forma de coleta e apresentação das informações, levando cada empresa ou setor a imaginar e desenhar ferramentas do zero, deixando muita insegurança no ar.
“Se o produtor ou o vendedor [uma cooperativa, por exemplo] não conseguir cumprir com o regulamento, ninguém vai comprar dele”, afirma o advogado Bruno Galvão, do escritório Blomstein, de Berlim. “Se alguém comprar, não vai conseguir comprovar [a conformidade com a lei] e pode ser responsabilizado e multado por causa do descumprimento.”
A regra não distingue desmatamento ilegal e legal, algo previsto na legislação brasileira. O Código Florestal brasileiro permite desmate nas propriedades rurais, desde que sob autorização e respeitando as áreas de Reserva Legal, faixas de vegetação nativa que precisam ser mantidas em cada imóvel.
Na Amazônia, essa quantidade é de 80%; no bioma do Cerrado dentro da Amazônia Legal passa para 35%; e, em outras regiões do país, cai para 20%.
A possibilidade de penalização alarma o agronegócio pela importância do bloco europeu, um dos principais parceiros comerciais do Brasil.
O nível de adequação à nova lei varia de acordo com a commodity e as respectivas particularidades das cadeias produtivas.
A pecuária, por exemplo, tem feito esforços de rastreabilidade dos fornecedores indiretos, a principal origem do gado que passou por áreas desmatadas.
No Brasil, a maioria dos animais passa por diversas fazendas antes do abate – obter e integrar os dados necessários é uma tarefa complexa que deveria ser estabelecida em regulamentações oficiais, dizem os grandes frigoríficos.
Plataforma própria
O setor cafeeiro resolveu apostar numa plataforma própria para reunir informações que comprovem que sua produção está livre de desmatamento.
Criada pelo Cecafé em parceria com a Serasa Experian, a Plataforma de Rastreabilidade Cafés do Brasil consolida dados públicos como os do Cadastro Ambiental Rural (CAR), o registro dos imóveis rurais, do MapBiomas e do Prodes, sistemas que monitoram o desmatamento no país.
O sistema já reúne informações de mais de 50 membros do Cecafé – que produzem quase a totalidade do café exportado pelo país.
A ideia é que esses dados sejam disponibilizados em relatórios digitais
para que os importadores os utilizem em seus processos de due diligence e possam abastecer um outro sistema digital, desenvolvido pela União Europeia, que vai receber as informações dos produtos que estão chegando de fora.
São os compradores os responsáveis por inserir todos os dados nessa ferramenta, que incluem a descrição do produto, o país de produção e coordenadas de geolocalização.
As informações não serão verificadas automaticamente pelas autoridades. Dessa forma, o importador pode inserir informações falsas de geolocalização, por exemplo, e ficar sem restrições em um primeiro momento.
Mas não por muito tempo. O texto da lei prevê uma checagem anual dos dados que deverá ser feita com pelo menos 3% dos importadores. A conferência ficará sob responsabilidade dos países do bloco.
“Vão existir diversos controles, e não só da autoridade fiscalizadora, mas também das ONGs, que certamente vão ficar de olho. Importar um produto não conforme é correr um risco muito alto, com consequências graves”, afirma Bruno Galvão, do Blomstein.
Todo esse sistema digital europeu, no entanto, ainda está em fase de desenvolvimento e deve ser lançado ao público em geral apenas em dezembro, pouco antes da regra começar a valer, situação que preocupa o Cecafé.
Superestimando a tecnologia
Outro ponto que gera muita incerteza entre os exportadores brasileiros são os mapas.
Uma das exigências feita aos importadores é o georreferenciamento, ou seja, eles terão de apontar no mapa de onde vêm os produtos que estão adquirindo.
A lei apenas sugere o uso do Copernicus, do programa espacial da União Europeia, mas não foi estabelecido um sistema padrão. “Todos os sistemas de satélite internacionalmente reconhecidos podem ser utilizados para fazer esse georreferenciamento”, afirma o advogado Galvão.
Isso abre a brecha para “falsos positivos” de desmatamento, segundo Marcos Matos, diretor-geral do Cecafé. Ele cita como exemplo o mapa de cobertura florestal do Joint Research Center [JRC], serviço que presta assistência científica à Comissão Europeia.
“A gente tem fazendas em Minas Gerais e no Espírito Santo que aparecem como se fossem florestas [no mapa do JRC], mas na verdade são áreas de café há mais de 15 anos. Leis como essas superestimam as tecnologias e subestimam a complexidade da cadeia produtiva”, afirma Matos.
Amazônia
A Embrapa fez um levantamento recente sobre a cafeicultura na região conhecida como Matas de Rondônia, um polo produtor na Amazônia que exporta para Europa e América do Sul.
Em 7 dos 15 municípios que compõem a região, não houve desmatamento depois da data de corte estabelecida na EUDR, segundo o estudo. De um total de 34,4 mil hectares de cultivo, apenas 194,8 hectares (0,57%) foram desmatados entre 2020 e 2022.
Como as áreas de cultivo de café no Estado são muito pequenas – com uma média de 3,5 hectares por propriedade – não foi possível fazer uma análise automatizada das imagens de satélite.
“Eram muitos erros. A gente precisou avaliar as imagens visualmente e marcar todo o talhão na mão”, afirma Carlos Ronquim, da Embrapa.
Penalizando o pequeno
Na prática, isso significa mais custos e uma complexidade adicional nas comprovações exigidas pela UE – que atingem principalmente o pequeno produtor.
Rondônia não é o único Estado brasileiro a ter produção de café em propriedades pequenas. Em Minas Gerais, por exemplo, também há casos parecidos.
“No Cerrado Mineiro, pequeno é quem tem até 49 hectares de café. Já no Sul de Minas, o pequeno tem três hectares, um hectare e meio, são pequenas propriedades, porque lá é um terreno montanhoso”, afirma Regis Damasio Salles, diretor-superintendente da Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado de Monte Carmelo (Monteccer), perto do Triângulo Mineiro.
A Monteccer produz 500 mil sacas/ano e, há três anos, participou do primeiro embarque de café carbono neutro produzido no país. Para chegar nessa produção, houve um período de adaptação dos produtores, processo que começou ainda na década passada, segundo Salles.
Como a transformação para utilizar práticas sustentáveis em geral não é algo trivial no campo e custa caro, Salles teme que o pequeno produtor seja o principal penalizado pela regra europeia.
“Se você não der a devida atenção, a devida fase para a pessoa se adaptar nessa transição, você pode estar prejudicando muita gente”, afirma.
Multas ficam para depois?
Para quem importar produtos que não estão de acordo e não fizer o processo de due diligence, a lei europeia prevê multa que, no nível mais alto, seja equivalente a pelo menos 4% da receita bruta, a depender da gravidade do caso. A punição vai dos importadores até o comerciante na ponta.
“O supermercado que vende chocolate é tão responsável quanto o fabricante do chocolate ou o importador do cacau. Todos são responsáveis de ‘maneira solidária’ e estão sujeitos à multa, do começo ao fim da cadeia”, afirma o advogado Bruno Galvão, do Blomstein.
Também estão previstas sanções como o confisco dos produtos e das receitas, além da exclusão temporária de processos de contratação pública durante 12 meses e de acesso a financiamentos públicos.
O Cecafé defende que as multas aos importadores sejam suspensas entre um a três anos, a partir do começo da entrada em vigor da lei.
“Não queremos mudar ou alterar a lei. Ela começa, é feita a checagem, o envio de documentos, só não tem aplicação efetiva de multas para a gente poder criar esses padrões e todo mundo evoluir para estar na mesma página”, afirma Matos.
A legislação, no entanto, não prevê qualquer possibilidade de postergação para as sanções, segundo o advogado Bruno Galvão, do Blomstein. “Não tem nada na lei que permita prorrogá-la. Para isso, teria que se mudar a lei e colocar outra data de entrada em vigor”, afirma.
Governo contra a lei
As críticas à regra antidesmatamento vêm de todos os lados – até mesmo dentro de casa. Descontentes com a legislação, 20 dos 27 integrantes da União Europeia endossaram uma carta da Áustria, em março, que pedia para que a Comissão Europeia postergasse a entrada da lei em vigor.
No fim de maio, foi a vez de os Estados Unidos, o maior parceiro comercial da União Europeia, pedir o adiamento. A proposta preocupa os americanos porque pode afetar principalmente as empresas de madeira e papel e celulose do país.
O Brasil também faz coro aos pedidos de outros países. Para o embaixador Fernando Pimentel, diretor do departamento de política comercial do Ministério das Relações Exteriores, a legislação é discriminatória e punitiva.
“Ela não favorece a cooperação, que toda ação com objetivo climático devia almejar. É uma lei unilateral e viola tanto os princípios da Organização Mundial do Comércio, quanto os próprios princípios das convenções ambientais e climáticas que prezam a ação conjunta”, afirma Pimentel ao Reset.
O embaixador não descarta a possibilidade de que o bloco europeu adie a vigência da lei. “Como eles estão devendo bastante informação, é possível que eles adiem, mas por questões próprias, por problemas de execução do lado deles.”
Mesmo com essa perspectiva, o governo prega que os produtores façam a adaptação de qualquer maneira, segundo Pimentel.
“Eu trabalho com o pior cenário, de que não vai ter um adiamento. Por isso, temos que nos preparar, conseguir as informações possíveis, brigar para que nossos sistemas sejam aceitos e respeitados e que as características específicas da agricultura tropical sejam levadas em conta, cobrando uma resposta tempestiva”, afirma Pimentel.
As respostas da União Europeia para resolver as dúvidas operacionais foram insuficientes até o momento, segundo o embaixador.
“O sistema europeu dá vários falsos positivos [de desmatamento], por exemplo. Mas o que acontece quando se faz uma comparação das imagens? E os falsos positivos, como ficam? Não temos essas informações”, afirma.
Sem os esclarecimentos, Pimentel alerta para o fato de que a legislação pode contribuir para uma situação de over-compliance por parte dos importadores.
“Para mitigar o seu risco, o importador pode ser ainda mais rigoroso do que a própria lei demandará. Quanto mais nebulosa [a lei], maior o risco. E como cada importador faz o seu risco. a gente não sabe o que o eles vão cobrar.”