COLUNA - ESG VEM DE BERÇO

Precisamos discutir relações de poder com as crianças

Livro tira peso dos termos autoridade e autoritarismo, e conduz o leitor a pensar, de forma criativa e lúdica, em liderança

Precisamos discutir relações de poder com as crianças
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Basta bater o olho nas páginas de política dos jornais e imaginar. Não precisa nem fechar os olhos. Habitamos um grande reino em que reis — sim, todos homens — disputam aos tapas, no sentido figurado e literal, o poder.

Eles estão em todos os continentes, permeiam todas as culturas e, no geral, se veem como invencíveis. Despidos da tecnologia de que fazem uso em todas as frentes, chegam a parecer-se, na essência, com governantes absolutistas da era medieval, bárbaros e pares do império romano, para não precisar voltar muito no tempo.

Refiro-me aqui ao que entendem por conquistas, à intensidade e à falta de limite para ganâncias e demonstrações de superioridade e sobre como conduzem suas relações. 

Ainda em setembro, chegou às nossas telas uma manifestação — abominável — de como usar o poder para sapatear sobre um grupo social fragilizado no que tange seus direitos essenciais, vítimas da desigualdade econômica (mas não apenas) e, ainda que pareça paradoxal, força de trabalho principal de um país onde mais da metade dos lares são chefiados por mulheres. 

Fora do reino da política, mas também resultado dela — e de muito mais — um grupo de homens em formação para assumir o papel de médicos violou todos os valores imagináveis ao atuar de maneira grotesca, agressiva, misógina e — apura-se — criminosa. Com que direito? Com poderes atribuídos por quem, para que se sentissem tão à vontade e inimputáveis?

Excluindo-se questões técnicas e protocolos que se aprendem nos bancos das universidades, como um médico cuida de seus pacientes? Como cuidamos de quem está à nossa volta? Como cuidamos todos de uma população sofrida e privada de tanto? Que exemplos queremos dar? Que exemplos queremos ser?

Está aí, afinal, a essência da governança. Com base em que valores, princípios, mecanismos e recursos, indivíduos pautam seus relacionamentos pessoais, políticos e corporativos? Como atuam para que a boa convivência, o bem-estar e a vida prevaleçam?

Na literatura infantojuvenil transbordam histórias de reis e suas guerras de poder. Não faltam modelos e inspirações de soberanos para imitar ou deles se afastar.

A conversa, porém, pode ir além. Sobretudo, abrir novas trilhas.

O que é preciso para ser rei?

Em O que é preciso para ser rei?, lançado em 2022 pela Pequena Zahar, do grupo Companhia das Letras, Tino Freitas, Léo Cunha e Fê, propõem um passeio divertido às infinitas possibilidades do que significa “mandar”, subvertendo elementos associados à realeza.

A começar pelo título. Que tal perguntar ou consultar em vez de determinar? As respostas das crianças serão inúmeras e podem levar a conversas importantes sobre caminhos já percorridos e novas experiências.

Lançado antes do primeiro turno das eleições presidenciais do ano passado, a obra convida a um novo olhar — muito mais generoso e atencioso — sobre as relações de poder e de governança.

Tira importância e peso dos termos autoridade e autoritarismo, e conduz o leitor a pensar, de forma criativa e lúdica, em liderança. Liderança essa que não se restringe a posições de poder na política pública. Fala, no fundo, sobre como semear uma cultura de paz.

Mediadores de leitura são gentilmente levados a refletir sobre seu estilo de comando e controle sobre crianças que estão sob sua responsabilidade, ao lado delas, com elas.

Também poderão repensar suas relações em outras esferas da vida. Afinal, o que é preciso para ser um bom professor? E uma boa mãe? Um bom médico? Uma boa irmã? Um bom chefe? Como se governa bem uma casa?

O texto não tem começo, meio e fim. Nasceu de uma música e dela conservou o ritmo, a sonoridade e as rimas. Dá um recado poético e metafórico e coloca na pauta da família e da escola conceitos que parecem relativamente distantes da vida real, mas que estão no dia-a-dia de qualquer um.

Você vai encontrar na narrativa visual e nos simpáticos versinhos — que ensaiam respostas à pergunta do título — ideias sobre transgressão, coletividade, negociação, resistência, autoestima, iniciativa e autonomia. Responsabilidade! Sem que nenhum desses termos seja mencionado!

“É ter orelha de elefante para escutar o semelhante e entender o desigual.”

“Saber que a bola, mesmo sua, foi feita para jogar na rua. Perder é parte de ganhar.”

“Mesmo com tanta experiência, é aprender que a ciência também ajuda a governar.”

As ilustrações, do Fê (Sérgio Fernando Luiz), arquiteto de formação, amarram os versos e guiam o leitor por um colorido e alegre jogo de imaginação. Não deixe de reparar em uma das páginas: todas as crianças usam coroa. Não apenas uma.

Os autores são categóricos: herança e castelo não são suficientes para fazer um rei. O que vale é a confiança, o partilhar e o brincar. Declaram que o individualismo está fora de moda e que o que importa é o diálogo. Dedicam a obra às crianças que só fazem guerra de travesseiro. A obra acabou de receber o selo Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), na categoria criança.

Os reis clássicos da literatura infantil

Impossível recomendar um título recente sobre “rei” sem citar os clássicos do tema. As obras que destaco aqui têm uma abordagem completamente diferente de O que é preciso para ser rei?. Premiadíssimos e beirando seus 50 anos, ambos têm um único personagem principal, é claro, o rei. Cada um à sua maneira foca na questão da dominação, do uso (e abuso) de poder e da prevalência do mais forte sobre o mais fraco.

O reizinho mandão, de Ruth Rocha, hoje na editora Salamandra, foi publicado pela primeira vez em 1978, quando o Brasil vivia sob uma ditadura militar. Não à toa, ele trata de democracia e liberdade e faz uma crítica ao regime da época. Escapou da censura e ganhou o mundo. O tempo passou e ele continua atual. Recebeu prêmio da FNLIJ em 1978, com selo Altamente Recomendável, e entrou para a lista de honra do prêmio Hans Christian Andersen, em 1980, o Oscar da literatura infantojuvenil.

Outro título igualmente condecorado, que reflete o mesmo momento histórico, é o O Rei de Quase-Tudo, de Eliardo França, da Global. Está na lista de honra de 1979 do IBBY, o conselho internacional da literatura infantojuvenil, recebeu menção honrosa na Bienal de Ilustrações da Bratislava em 1975, foi classificado como Livro para um Mundo Melhor da Unesco em 1979 e entrou para a lista do Melhor para a Criança, em 1974, pela FNLIJ.

Quem é que manda aqui mesmo?

Entre as publicações contemporâneas, destaco Quem manda aqui?, de André Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo e Pedro Markun, publicado em 2015 pela Companhia das Letrinhas. O grupo de autores é o mesmo que produziu A Eleição dos Bichos, já recomendado por esta coluna.

Nesse livro, o rei, com todas as suas características tradicionais, divide as páginas com outros mandões, como um militar e uma professora, e também representantes da sociedade que, ao longo da história, vêm travando batalhas para fazer valer seus direitos. Entre eles, uma escravizada, um indígena e uma prefeita. No final, o personagem mais importante da história é convocado: o leitor e a leitora! Ele e ela são lembrados de que às vezes mandam e, às vezes, têm de obedecer. Mas, mais importante, podem escolher.

Os autores explicam que buscaram equilibrar os personagens femininos e masculinos na obra e que optaram por usar o feminino nos textos que tratam do coletivo, procurando equiparar as forças também na linguagem.

O livro foi concebido a partir de oficinas entre eles e 260 crianças, em São Paulo (SP) e em Outro Preto (MG), onde discutiram modos de governar e de tomar decisões. Foi publicado pela primeira vez de forma independente, graças à captação de recursos feita por meio de uma plataforma de financiamento coletivo.


Longe de mim querer mandar, por isso uma sugestão: sempre que possível, compre seus livros em uma livraria independente, aquela que ilumina as ruas do bairro, vira ponto de encontro e coleciona histórias nas prateleiras e entre a sua gente – leitores, funcionários, autores, editoras, etc. Elas vivem apenas da venda de livros para pagar salários, impostos, aluguel, prestadores de serviços, etc.

(Foto: Divulgação de “O que é preciso pra ser rei?”, da Companhia das Letras)