ANÁLISE

Com a eleição de Trump, a COP29 será o funeral do 1,5°C?

Espectro do negacionista do clima vai pairar sobre a conferência, mas a missão dos negociadores não muda – e os reflexos podem ser sentidos em Belém

O presidente americano, Donald Trump
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Entre as pessoas que acreditam na mudança do clima, uma distinção fundamental nos dias de hoje, as reações à vitória de Donald Trump se distribuíram em um arco: da resignação ao desespero, de promessas de resistência ao catastrofismo.

É difícil não ser tomado pelo pessimismo. Pouco se espera do negacionista que diz que o barulho das turbinas eólicas causa câncer e promete furar o solo como ninguém atrás de mais petróleo. Mas é inútil o exercício de tentar prever o que fará o primeiro criminoso condenado pela Justiça a se mudar para a Casa Branca.

Com exceção das ideias sem fundamento para criticar a energia limpa, o assunto clima foi essencialmente ignorado durante a campanha eleitoral de Trump (e apareceu pouco na de Kamala Harris). Torcer pelo melhor e preparar-se para o pior não é desculpa esfarrapada. É uma estratégia de sobrevivência digna.

Mas aqui vai uma sugestão razoável aos diplomatas brasileiros que embarcam para a COP29, a conferência do clima da ONU, que começa na próxima segunda.

Eis a proposta: um rebranding.

O objeto do hipotético reposicionamento de marca é a Missão 1,5. Este é o nome oficial do esforço liderado pelos negociadores brasileiros e abraçado por seus pares dos Emirados Árabes Unidos e do Azerbaijão. Eles formam a “troika” dos presidentes das COPs 28, 29 e 30 – esta última marcada para Belém do Pará, no ano que vem.

A Missão 1,5 é uma tentativa de manter viva a meta de limitar a 1,5°C o aquecimento do planeta em comparação com a era pré-industrial.

Antes mesmo de contados os votos dos americanos, todos os cálculos dos cientistas já indicavam que alcançar esse objetivo será extremamente difícil. Em um número: para seguir – ou melhor, para entrar – na rota do 1,5°C, o mundo precisa reduzir em 43% o CO2 lançado na atmosfera até 2030.

Isso significa que todos os 197 signatários da Convenção do Clima teriam de apresentar novos planos nacionais de descarbonização (NDCs) muito mais agressivos que os atuais – e cumpri-los, algo que não aconteceu com as metas anteriores. Esse trabalho de convencimento, a tal Missão 1,5, será uma das medidas do sucesso da COP de Belém, presidida pelo Brasil.

Os Estados Unidos são o maior emissor de gases de efeito estufa historicamente e nos rankings atuais ficam só atrás da China. Sob nova administração hostil à cooperação internacional e firme no campo do negacionismo, seria mais honesto mudar o nome da iniciativa para Missão Impossível.

Essa marca não sobrevive a cinco minutos de brainstorming, mas insistir em 1,5°C pode dar a impressão de que os mecanismos internacionais para lidar com a crise estão ainda mais descolados da realidade do que muita gente já acredita. O mundo é outro desde a madrugada de quarta-feira.

Cada vez mais cientistas já dizem publicamente que 1,5°C é inalcançável. (Apesar de 2023 ter ficado 0,05°C abaixo desse limiar, não se trata de superá-lo uma vez; o que conta é uma série de registros ao longo de alguns anos, e hoje estamos em algo como 1,3°C).

Se não chegamos lá, é questão de tempo. Uma pesquisa com centenas de especialistas em clima apontou um planeta uns 2,5°C mais quente neste século.

E agora?

A resposta coletiva à escolha dos eleitores americanos não estará na agenda oficial nem fará parte dos documentos oficiais aprovados daqui duas semanas, quando a cúpula chegar ao fim, mas será o resultado mais aguardado da COP29.

Não vai haver rebranding nenhum, é claro. Apesar da aparência de que reuniões internacionais são só saliva, emissões de voos internacionais e desperdício do dinheiro do contribuinte, negociadores não são marqueteiros.

Em termos midiáticos, não deve sair muito de Baku. Muitos empresários e banqueiros decidiram pular a conferência, que seria “intermediária”. Mas diga a um gaúcho ou valenciano – daqueles que jogaram lama no rei da Espanha – que temos o luxo de enrolar um ano.

A francesa Laurence Tubiana, CEO da European da Climate Foundation e arquiteta do Acordo de Paris, enquadrou sua reação à vitória de Trump com algum otimismo. Os tratados internacionais “são mais resilientes e mais fortes que as políticas de qualquer país individual”, disse ela.

Vai ser difícil conter o impulso econômico da transição energética, disse ela, inclusive com a política de incentivos do governo americano (cuja sobrevivência é uma das questões centrais em Washington a partir de janeiro do ano que vem).  

Pelo menos os carros elétricos, outra estranha obsessão de Trump, devem ser poupados. Elon Musk, o fundador da Tesla, vai querer o retorno do investimento que fez na campanha do seu novo melhor amigo. Num país em que quase 30% das emissões vêm dos transportes, não é pouca coisa.

Isso pode dar algum alento, mas um dos pilares da Convenção do Clima da ONU é a soberania nacional. Os países concordam em cooperar, mas não são forçados a nada – e é claro que Trump pode tirar os EUA do Acordo de Paris mais uma vez.

O que está sob controle dos delegados, com ou sem a ajuda dos americanos, não mudou. Eles precisam chegar a um acordo sobre uma nova meta de financiamento para ajudar os países mais pobres a mudar suas matrizes energéticas e a se preparar para a nova realidade do clima.

O nome oficial desse acordo é Nova Meta Coletiva Quantificada, ou NCQG na sigla em inglês. Guarde esses termos se quiser acompanhar o noticiário da COP, desta ou da de Belém. Sem estabelecer números e prazos, a maior parte do mundo não tem como apresentar planos de descarbonização factíveis. Sem dinheiro na mesa, as NDCs, base da Missão 1,5, são só uma lista de PDFs armazenados num site da ONU.

O histórico é desanimador. Entre 2020 e 2025, o combinado era um repasse de US$ 100 bilhões anuais. Esse total só foi atingido uma vez, e graças à “contabilidade criativa” de alguns doadores. A necessidade é de trilhões. Nem tudo vai vir dos orçamentos nacionais, mas o comprometimento dos países ricos é uma condição para que o capital privado entre para valer no jogo.

O sucesso em Baku é central para as ambições brasileiras. O país não vai receber esse dinheiro, e existe a pressão de que na verdade sejamos contribuintes desse fundo. Mas a questão é outra. Um impasse em Baku significa que a bomba vai estourar em Belém.

E o atual acordo de financiamento acaba ano que vem. Sem dinheiro, adeus Missão 1,5 e adeus NDCs ambiciosas. As chances de que a COP30, em Belém, não entregue resultados importantes crescem consideravelmente.

A eleição de Donald Trump é uma notícia terrível para quem sabe que o que estamos assistindo agora – o Rio Grande do Sul submerso e os rios da Amazônia sem água – são só uma amostra do que está por vir. O clima em Baku deve ser sombrio, os espíritos estarão abalados, mas o sistema terá de provar que resiste a mais este choque.

A COP29 pode ser o funeral do objetivo de 1,5°C, mas a missão não pode ser impossível.