ENTREVISTA: ‘Na COP de Belém, Brasil precisa liderar pelo exemplo’

O trabalho do país começa já, com um novo plano de descarbonização ambicioso e que suba a barra para o resto do mundo, diz Laurence Tubiana, uma das arquitetas do Acordo de Paris

A francesa Laurence Tubiana, uma das arquitetas do Acordo de Paris e CEO da European Climate Foundation
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Se for possível apontar celebridades no mundo da diplomacia do clima, a economista francesa Laurence Tubiana certamente está na lista. Ela foi uma das figuras decisivas na costura do Acordo de Paris, o mais importante avanço obtido em mais de 30 anos de negociações climáticas internacionais.

O documento, firmado na COP21, na capital da França, completa dez anos em 2025 e segue como o mapa que guia a tortuosa e lenta – demais, para alguns críticos – cooperação global para evitar consequências ainda mais graves da mudança climática.

Um dos aspectos centrais definidos em Paris foram as Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), os planos nacionais de descarbonização.

Sob a presidência do Brasil, a COP do próximo ano, em Belém, os países entregam as novas versões desses documentos. Cada nação faz as suas escolhas, mas a ideia é que a cada rodada os planos sejam mais ambiciosos.

Esta é a primeira prioridade da diplomacia brasileira, diz Tubiana. “O Brasil precisa dar o exemplo. Fazer a sua própria e mostrá-la para os outros países, comunicar as expectativas da presidência [da COP].”

O trabalho do anfitrião começa muito antes da abertura da conferência, e a elaboração de um plano ambicioso vai deixar claras as expectativas de aceleração, afirma ela.

A necessidade de financiamento caminha junto. Sem saber de onde vem o dinheiro, muitos dos países em desenvolvimento não podem se comprometer a fazer mais.

A necessidade de recursos é evidente, mas é preciso aprofundar a conversa. “Hoje dizem simplesmente: “Poderíamos fazer muito mais se tivéssemos mais recursos”. Mas o que são “mais recursos”? E para fazer o quê?”.

O assunto tem ocupado a maior parte de seu tempo. Depois de muitos anos assessorando o governo francês nas negociações internacionais, hoje ela é CEO da European Climate Foundation, uma ONG que faz filantropia e ajuda no desenvolvimento de políticas públicas voltadas ao clima.

Tubiana conversou com o Reset em São Paulo, no final de fevereiro. Ela esteve na cidade para participar do Fórum Brasileiro de Finanças Climáticas. Veja abaixo os principais trechos da entrevista.

O trabalho diplomático do país-sede começa muito antes da abertura da COP. O que o governo brasileiro tem de fazer daqui até Belém?

A primeira coisa é a próxima rodada de NDCs. O Brasil precisa dar o exemplo. Fazer a sua própria e mostrá-la para os outros países, comunicar as expectativas da presidência [da COP]. Fizemos isso [antes da COP de Paris de 2015]. É importante ser claro e transparente em relação aos objetivos e ao nível de ambição.

Deve haver envolvimento, um sentimento de ‘posse’, da sociedade, dos governos locais, para que todos tenham um papel ativo. A NDC não pode ser um documento publicado e depois esquecido numa gaveta.

Em segundo lugar, pensar o próprio processo. Mudanças [na governança] levam tempo, talvez não se concretizem na COP30, mas Belém pode ser o lugar para que todos concordem que temos que melhorar o sistema.

Deveríamos ter instrumentos mais fortes, porque há muita distância entre a discussão a realidade dos compromissos dos governos e do setor privado.

Ao mesmo tempo em que deve cobrar mais ambição, o Brasil quer produzir mais petróleo. Não é uma contradição?

Não podemos ser ingênuos. Estamos falando do setor petroleiro, seja ele brasileiro, canadense ou saudita. Eu acredito na previsão da Agência Internacional de Energia, que fala em pico no curto prazo e depois um declínio da demanda.

Novos projetos de exploração levam tempo para produzir. Você tem de fazer suposições sobre o mercado daqui 15 ou 20 anos e decidir se vai valer a pena do ponto de vista econômico.

E há um segundo aspecto de justiça, por assim dizer. Idealmente os países mais pobres continuariam produzindo e os desenvolvidos abandonariam a exploração. Mas não sei se temos as condições geopolíticas para que isso aconteça.

No caso do Brasil, apresentar sua eletricidade como muito limpa, mas ao mesmo tempo está explorando petróleo. Há uma tensão aí.

Precisamos de algo sobre os combustíveis fósseis, mas acho difícil que isso aconteça no âmbito dos acordos climáticos. Uma discussão sobre essa ordem [de abandono de petróleo e gás] me parece um pouco utópica.

Lula fala com frequência sobre a necessidade de uma nova governança, inclusive em relação ao clima. O que poderia ser feito de forma efetiva para avançar mais rápido?

Não tenho uma resposta. Mas primeiro temos discutir a reforma do processo e concordar que ele não está dando os resultados esperados. Isso em si já seria um ponto de partida.

Uma das ideias que defendo é aumentar o nível de seriedade e de responsabilidade. Criar mecanismos que permitam verificar o que está sendo feito de fato, particularmente no setor privado.

Obviamente os países têm soberania para decidir suas próprias trajetórias [de descarbonização], mas precisamos de mais clareza sobre o que são esses caminhos.

E é claro que precisamos falar de financiamento. Me parece evidente que a resposta à crise do clima, tanto na mitigação quanto na adaptação, são problemas econômicos.

Financiamento será o tema da COP deste ano. O que seria um resultado ideal, e o que é razoável esperar?

O importante é aprofundar a discussão. Hoje dizem simplesmente: “Poderíamos fazer muito mais se tivéssemos mais recursos”. Mas o que são “mais recursos”? E para fazer o quê? As estratégias têm de ficar mais claras, seja na COP deste ano ou na próxima.

É bom ter um fundo de perdas e danos [sacramentado na COP passada]. Temos alguns compromissos de doação, mas são poucos e não sabemos se as contribuições serão anuais, por exemplo.

Transporte marítimo é um setor altamente poluente, mas está ausente das conversas. Mesma coisa para a aviação. São dois setores que poderiam contribuir [por meio de algum tipo de taxação especial]. É claro que há muita resistência a essas ideias, mas precisamos desse dinheiro adicional.

Os bancos multilaterais de desenvolvimento podem fazer mais. O plano de redução de riscos cambiais anunciado pelo governo brasileiro é muito interessante. Essa ideia andava em círculos havia muito tempo, agora é uma avenida promissora, que pode ser globalizada.

Então não é só um único resultado, mas sim a discussão em torno de um sistema que não atende às necessidades atuais.

Brasil e China reclamam de medidas comerciais unilaterais baseadas no clima, como o CBAM, a sobretaxa de carbono imposta a certos produtos importados pela União Europeia. Esse tipo de medida ajuda ou atrapalha?

Paris não fala de comércio internacional. Tentou-se introduzir alguns parágrafos, mas houve muita resistência. Agora que a transição está acontecendo de verdade, ainda que lentamente, temos impacto econômico.

Na Organização Internacional do Comércio temos regras para subsídios, mas não há nada que trate de subsídios para externalidades negativas, e é essa a lógica do CBAM.

Precisamos de uma discussão honesta. Diria que esse é o lado positivo do CBAM: como reconhecemos mutuamente nossos esforços de descarbonização? Era uma conversa inaceitável por causa do elemento da soberania.

Idealmente [a arrecadação do CBAM] voltaria para os países exportadores para ajudá-los nas suas transições. Isso inclusive era uma ideia inicial, mas por causa da Covid e da situação fiscal difícil de muitos países ficou difícil implementá-la.

O mesmo vale para o desmatamento. Brasil e Europa têm que concordar sobre uma forma de reconhecer mutuamente [seus pontos de vista].

Os protestos recentes de agricultores na Europa mostram que o custo político das ações climáticas pode ser alto. Isso não é motivo de preocupação?

Era só um slogan, não havia política climática envolvida no protesto dos agricultores. Mas existem questões legítimas.

O problema de muitos agricultores europeus é o nível de endividamento e a perda de produtividade, porque as terras estão degradadas e produzindo cada vez menos. A agricultura intensificada cria o problema de degradação do solo, e é claro que é difícil competir com países que têm um sistema mais saudável.

Essa transição no setor agrícola, que envolve o aspecto social, é difícil e isso é verdade em todos os países.

Além disso, algo que acontece há muito tempo nos Estados Unidos começa a aparecer na Europa, que é a desinformação sobre a transição energética, principalmente por parte das empresas de petróleo e gás. Elas dizem que a transição vai custar muito caro, que deveríamos ir mais devagar.

Entendo o porquê. Alguns anos atrás eles estavam condenados a mudar, mas agora, com as guerras, eles se sentem os reis do mundo.

A extrema-direita europeia tenta capturar essa insatisfação, e existe a chance real de que Donald Trump volte à Casa Branca. Qual seria o impacto disso?

Seria um pesadelo. [A saída dos EUA do Acordo de Paris no primeiro mandato de Trump] teve um efeito negativo na dinâmica, mesmo que nenhum outro país tenha saído.

Mas o ritmo de redução de emissões não se alterou. As usinas de carvão continuaram fechando. E o [megapacote verde de Joe Biden] IRA foi pensado para resistir a mudanças na presidência.

De qualquer modo, [se ele for eleito] será fundamental que os países decididos a avançar sejam ainda mais ambiciosos.

Numa entrevista recente, logo antes da COP de Dubai, a senhora parecia relativamente otimista. Antes do Acordo de Paris estávamos rumando para um aquecimento de 4 ou 5 graus, agora estamos mirando em 2, talvez 1,5. Mas muita gente acha que andamos devagar demais e estão perdendo a confiança no processo. Devemos acreditar na COP?

De certo modo, ambas as leituras estão corretas. As coisas estão acontecendo desde Paris, muitas novas tecnologias, e temos mais conscientização. Você não vê ninguém, seja no setor público ou privado, que não leve a sério a questão do clima. Não era assim.

Por outro lado, de fato temos cada vez menos tempo para frear o aquecimento. Mas não temos muita escolha. Temos que fazer o máximo, porque o IPCC (painel de cientistas climáticos da ONU) diz que cada fração de grau conta.

Temos de acelerar, e as COPs podem ajudar nisso, em parte. Precisamos de senso de urgência e foco. Pense na resposta global à pandemia. Mas é claro que temos de lidar com as crises geopolíticas. Vivemos em um mundo em que o som das armas é mais alto que as preocupações com a mudança climática. Se quisermos que as COPs e o Acordo de Paris sejam cumpridos e revitalizados, provavelmente teremos de mudar o sistema.