No final de 1942, os ônibus pararam de circular na Bélgica. O país estava ocupado pelos nazistas, e o diesel foi confiscado para uso em veículos militares.
Em menos de seis meses, engenheiros locais encontraram uma solução: usar amônia como combustível. Tanques foram instalados no teto de cerca de cem ônibus. Com pequenas adaptações nos motores, o transporte público voltou.
Emissões de CO2 eram a última coisa na cabeça dos belgas no auge da Segunda Guerra, mas 80 anos depois uma urgência de outra natureza pode levar a amônia de volta aos tanques de combustível.
O processo de produção da amônia é um dos mais poluentes de toda a indústria química. Estima-se que até 2% de todas as emissões de gases de efeito estufa estejam na sua conta.
Agora, estamos falando do mesmo químico de cheiro forte usado em produtos de limpeza, mas com uma diferença importante: seu componente-base é o hidrogênio verde.
Economia do hidrogênio soa mais sexy e futurista, mas tudo indica que ela será precedida pela economia da amônia.
A amônia está despontando como a maneira mais econômica de armazenar e transportar o hidrogênio verde que deve começar a fluir pelo mundo, inclusive do Brasil.
“Navios e dutos já carregam amônia pelo mundo, todos os dias, o tempo inteiro”, diz ao Reset Douglas MacFarlane, da Universidade Monash, em Melbourne (Austrália), e um dos defensores da ideia da economia da amônia.
“Literalmente, a cada mês que passa fica mais claro que a amônia será o veículo ideal para mover o hidrogênio verde. Ainda estamos no começo, mas parece uma escolha óbvia.”
O químico não serve apenas como um meio. O primeiro cargueiro movido a amônia deve sair do estaleiro ainda este ano.
Portos no mundo todo, entre eles um no Espírito Santo, planejam estruturas de abastecimento desse novo combustível para fazer o comércio internacional rodar sem emitir CO2.
E a amônia verde também pode ser uma parte importante da descarbonização da agricultura, pois 80% da produção mundial do composto hoje é consumida pela indústria de fertilizantes.
Malcheirosa e suja
O mercado global da amônia “suja” é enorme: cerca de 240 milhões de toneladas anuais, que devem movimentar US$ 90 bilhões em 2026.
Além de fertilizantes, ela é utilizada na fabricação de plásticos, têxteis, explosivos e gases refrigerantes, entre outros.
O que torna a amônia ‘suja’ é justamente o hidrogênio que entra em sua composição.
Pausa para uma breve explicação química: a molécula de amônia é composta de um átomo de nitrogênio e três de hidrogênio – NH3. O processo para formá-la, chamado Haber-Bosch, segue essencialmente inalterado há mais de cem anos.
O metano do gás natural é submetido a alta pressão e temperatura para separar os átomos de hidrogênio. Depois, com a ajuda de um catalisador, eles são combinados com o nitrogênio.
Cada tonelada de amônia produzida representa duas toneladas de CO2 despejadas na atmosfera, a maior parte para obter o hidrogênio “cinza”.
Quando o hidrogênio utilizado é verde – ou seja, em processos sem emissão de dióxido de carbono – a amônia recebe a mesma classificação (o gás é incolor).
Fertilizantes verdes
A Yara, gigante norueguesa dos fertilizantes, vai começar a produzir amônia verde em uma unidade de Cubatão (foto), no litoral de São Paulo.
Em vez de gás natural, será usado biometano comprado da joint-venture da Raízen com a Geo Biogás & Tech. A troca representará uma redução de 80% nas emissões de CO2.
O volume inicial será pequeno: apenas 3% do volume total de gás consumido pela fábrica será de baixo carbono. Mas a iniciativa é um empurrão a mais para que se desenvolva uma economia nacional de hidrogênio verde (ou quase verde).
Muitos dos projetos em estudo no Brasil estão localizados em regiões portuárias e são voltados para a exportação. “Iniciativas [como a da Yara] aproveitam o potencial logístico e ajudam a criar uma economia interna de baixo carbono”, diz Giovani Machado, diretor de estudos econômicos da Empresa de Pesquisa Energética, ligada ao Ministério de Minas e Energia.
Para viagem
Embora ainda não haja definições, é provável que o hidrogênio verde, ou H2V, também seja embarcado na forma de amônia.
Em forma gasosa, o hidrogênio ocupa espaço demais para energia de menos. Para transformá-lo em líquido, é necessário resfriá-lo a -253°C, o que significa gastar um terço da energia no processo de liquefação.
Já a amônia pode ser liquefeita a -33°C ou submetida a baixas pressões. E, para um mesmo volume, ela contém 50% mais conteúdo energético que o hidrogênio líquido.
Uma vez entregue ao destino, o processo de “craqueamento” – ou extração do hidrogênio contido na amônia – é simples, afirma MacFarlane. “Já existem equipamentos pequenos, que podem ser instalados em uma bomba de combustível ou até mesmo em carros.”
O destino dos carros parece mesmo elétrico. Afinal, o tempo de recarga e o peso das baterias não são problemas incontornáveis para o uso inconstante de um veículo de passeio.
Mas no transporte pesado a conta é diferente, e os navios cargueiros devem ser os primeiros a substituir o petróleo por amônia nos tanques.
A International Maritime Organization (IMO) estabeleceu a meta de descarbonizar todo o transporte marítimo até 2050, com redução de 40% até o fim desta década.
Como os imensos navios têm vida útil de até 30 anos, o trabalho já começou.
A australiana Fortescue Future Industries, subsidiária de inovação verde da mineradora australiana Fortescue Metals, quer colocar no mar o primeiro cargueiro movido a amônia – depois de ter feito adaptações bem sucedidas nos enormes caminhões usados nas minas e também em locomotivas.
A brasileira Vale integra um grupo de 23 companhias de setores variados que estudam formas de reduzir as emissões do transporte marítimo. Uma das metas da companhia é reduzir em 15% suas emissões de escopo 3, que incluem o transporte do minério de ferro.
“Consideramos a amônia a opção preferida entre os combustíveis zero-carbono”, disse em entrevista recente Dorte Kubel, diretora de assuntos regulatórios da MAN Energy Solutions, subsidiária da Volkswagen que produz motores para aplicações navais.
A movimentação nos portos brasileiros também já começou. A canadense AmmPower assinou um memorando de entendimento com o Porto Central, em construção no Espírito Santo, para avaliar a instalação de uma unidade de produção e distribuição.
A companhia anunciou acordo similar com o Porto do Sul da Louisiana, no Golfo do México, por onde passa mais da metade das exportações de grãos dos Estados Unidos. . A AmmPower estima um investimento de US$ 1 bilhão no projeto, que poderia produzir até 4 mil toneladas por dia.
Haja energia
Diante dos 240 milhões de toneladas de amônia suja produzidas hoje, projetos como o do porto americano são literalmente uma gota no oceano.
A economia da amônia verde vive um problema do ovo e da galinha.
De um lado, muitos dos novos usos ainda são acompanhados de uma ressalva: “potenciais”. De outro, os investimentos na produção esperam sinais de que haverá mercado.
MacFarlane diz estar confiante que a produção global vai se multiplicar por cem nas próximas décadas, concentrada em lugares com energia renovável barata para produzir o hidrogênio verde – como a Austrália e o Brasil.
E ele próprio aposta no que chama de “amônia de terceira geração”. Depois da versão suja e daquela obtida a partir do H2V, MacFarlane tenta viabilizar uma maneira de produzi-la diretamente da água.
Fruto de anos de pesquisa na Universidade Monash, a técnica é a base da Jupiter Ionics, startup fundada pelo cientista que recebeu um aporte inicial de US$ 1,8 milhão.
Em linhas gerais, o processo pula a etapa de produção do hidrogênio verde e depende apenas de água, energia limpa e catalisadores.
A técnica funciona em pequenas quantidades, e o próximo passo é testar a produção em escalas maiores. Pesquisadores dinamarqueses e americanos tentam uma abordagem parecida.
Ele enxerga equipamentos do tamanho de um contêiner, capazes de produzir uma tonelada de amônia verde por dia. Uma máquina dessas poderia resolver o problema de custo e acesso a fertilizantes para países pobres, por exemplo.
Em dezembro do ano passado, a equipe de MacFarlane conseguiu produzir cerca de uma xícara de sulfato de amônio, um fertilizante comum.
“Plantei pepinos num vasinho”, diz ele. “Deve ter sido o primeiro do mundo produzido com adubo verde de terceira geração.”
(Atualizada às 13h25 para incluir a informação de que o biometano será fornecido à Yara por uma joint-venture entre Raízen e Geo Biogás & Tech.)