Se a transição energética para fontes menos poluentes vem pesando sobre projetos de petróleo, por outro lado, tem evidenciado a atratividade de um tesouro escondido no interior do Brasil: o chamado ‘pré-sal caipira’.
Trata-se do biogás, uma fonte de energia renovável e abundante produzida a partir de resíduos de agricultura e que tem a vantagem de estar ao lado de pólos produtivos espalhados pelo país, mas ainda pouco explorada.
Um projeto que acaba de ser inaugurado pela Raízen começa a mudar essa realidade.
Na sexta-feira, a empresa dos grupos Cosan e Shell inaugurou a maior usina de biogás a partir de matéria-prima agrícola do mundo, com capacidade de produção de 138 mil MWh, o suficiente para abastecer uma cidade de cerca de 240 mil habitantes.
Em meio à pressão por boas notícias no front ambiental, a cerimônia contou com a presença do presidente Jair Bolsonaro e outros integrantes do alto escalão do governo.
“É um projeto numa escala sem precedentes no mundo”, diz Alessandro Gardemann, presidente da ABiogás e CEO da Geo Energética, sócia da Raízen no projeto. “É como ter um poço de gás [natural] no meio de São Paulo”.
Localizado em Guariba, a 340 quilômetros de São Paulo, o empreendimento está colado à usina sucroalcooleira de Bonfim, a segunda maior da companhia.
A produção de energia usa como insumo a vinhaça, um líquido resultante da destilação de cana-de-açúcar, e a torta de filtro, uma espécie de biomassa resultante do processo de produção do açúcar e do etanol.
O biogás vem se somar à cogeração de energia elétrica a partir da queima do bagaço e da palha da cana, que já é uma fonte de receita para as grandes usinas. A Raízen produz 1 GW de energia elétrica. Todas as suas 26 unidades são autossuficientes em energia e 13 delas vendem o excedente. Com o aproveitamento da vinhaça e da torta de filtro, a produção de energia por tonelada de cana aumenta em 50%.
A companhia vendeu a energia no primeiro e único leilão de biogás realizado em 2016, num contrato de 25 anos que deve lhe render cerca de R$ 26 milhões anuais.
Jabuticaba reluzente
O empreendimento coloca em evidência o potencial do biogás a partir da indústria sucroalcooleira, uma jabuticaba que pode contribuir ainda mais para o perfil de energia renovável do Brasil.
No mundo inteiro, com destaque para a Europa, tem crescido o uso do combustível. A diferença no Brasil é o tamanho da produção das usinas, que geram muito biomassa abrindo caminho para projetos de grande escala.
Estima-se que 45% do potencial de geração de biogás no Brasil esteja no setor. Outros 45% estão na agroindústria em geral, em projetos de menor escala, e 10% no setor de saneamento.
Se as usinas do Estado de São Paulo aproveitassem integralmente seus resíduos, poderiam gerar o equivalente a 40% de Itaipu, segundo estimativas do Centro de Pesquisa para Inovação em Gás, um think tank instalado na Escola Politécnica da USP e patrocinado pela Fapesp e pela Shell.
Voltando às aulas de química: o biogás é um combustível gerado a partir do processo de biodigestão feito por bactérias em qualquer tipo de material orgânico. De rejeitos agrícolas ao lixo comum de aterros passando pelo esgoto, ‘se fedeu, gera biogás’, diz um ditado pouco elegante mas cristalinamente didático do setor.
O produto é equivalente ao gás natural e pode ser transportado pelos mesmos dutos. Além de gerar energia elétrica, pode ser refinado e convertido em biometano, um substituto do diesel que pode abastecer veículos nos mesmos moldes do gás natural veicular (GNV).
“Um dos principais problemas do Brasil é que temos abundância de energia renovável, mas intermitente, como a eólica e a solar”, diz Gardemann, da Abiogás. “O biogás gera uma energia despachável a qualquer momento para dar segurança ao sistema, mas, ao contrário do gás natural comum, é renovável.”
O uso do biogás está longe de ser novo. Ele sempre foi usado por produtores rurais como forma de dar fim aos rejeitos mais prejudiciais ao meio ambiente. Mas, nos últimos anos, a evolução da tecnologia — e a pressão por energia mais limpa e economia circular — deu escala às ambições.
O pioneiro
A Geo Energética, de Gardemann, foi a primeira a apostar no biogás de cana em escala comercial, com o desenvolvimento de uma planta de demonstração de 4 MW em 2009, em Tamboara, no noroeste do Paraná. Na época, a maior planta da Alemanha — um dos mercados mais avançados em biogás — tinha 1 MW.
Quase dez anos depois de inaugurar a usina, a companhia é hoje dona de um modelo comercialmente viável que está sendo usado na planta da Raízen. Também está concluindo uma ampliação em Tamboara que vai aumentar a capacidade para 10 MW. Para efeito de comparação, a planta da Raízen tem 21 MW de potência.
O BNDES tem sido um dos principais financiadores dos projetos de biogás. Cerca de 70% dos R$ 30 milhões de investimento na ampliação de Tamboara vieram do banco de investimento, que financiou também R$ 122 milhões dos R$ 153 milhões gastos pela Raízen com a usina de Bonfim.
“Neste ano, a demanda não está tão grande, em parte por conta das incertezas da covid. Mas a procura por recursos para biogás tem sido forte e no ano passado tivemos até que fazer rateio entre as empresas”, diz Rafael da Costa, gerente no departamento do complexo agroalimentar e de biocombustíveis do BNDES. Os recursos vêm principalmente do Fundo Clima, do Ministério do Meio Ambiente, voltado para projetos de descarbonização.
A Geo Energética é sócia minoritária também de um terceiro projeto de biogás em desenvolvimento, da usina Cocal, em Narandiba, no interior de São Paulo — outro apoiado pelo BNDES. O biogás gerado a partir dos resíduos da usina irá para a rede da Gás Brasiliano, que vai fazer um gasoduto dedicado para ligar o empreendimento à cidade de Presidente Prudente, próxima à usina. A cidade está a cerca de 200 quilômetros do gasoduto Brasil-Bolívia e levaria anos para ser abastecida por gás de outra forma.
A gigante
Para a Raízen, o biogás faz parte do que chama de “plataforma integrada de renováveis”, uma forma de explorar o potencial de produtos de baixo carbono da cana além dos 2,6 bilhões de litros de etanol que produz anualmente e que vende em seus mais de 7 mil postos.
A ideia é validar o projeto antes de escalá-lo para novas usinas.
“Vemos muito potencial na avenida do biogás. Mas precisamos passar por uma fase de consolidação do projeto,e seguir um passo a passo de validação de premissas para anunciar novos projetos”, diz Raphaella Gomes, diretora de transição energética e investimentos renováveis da empresa.
Grosso modo, na Raízen a produção de açúcar e etanol consome cerca de um terço da cana. A companhia quer extrair cada vez mais valor dos outros dois terços, aumentando o resultado da companhia e a eficiência ambiental por hectare plantado.
Uma das principais linhas tocadas na transição energética é o chamado etanol de segunda geração, produzido a partir do bagaço e da palha da cana. Outra é a produção de pellets, aglomerados de biomassa de cana que são exportados para países europeus como substituto de carvão.
“Nossa ambição é sermos líderes na transição energética, no Brasil e em todos os mercados em que atuamos”, diz Gomes. “Queremos fazer tudo que pode ser produzido a partir de uma fonte natural e que vai deslocar um combustível fóssil.”
A Raízen quer testar também o biometano para abastecer tanto sua própria frota quanto a de outros veículos.
O diesel é o segundo maior custo e tem o segundo maior impacto na pegada de carbono do etanol, especialmente por conta do transporte da cana, diz Gardemann. Nesse sentido, ao usar o combustível renovável na sua própria frota, as usinas podem não só gerar receita extra como também melhorar o resultado atual.
Outro incentivo vem do programa RenovaBio, de créditos de descarbonização para a indústria de combustíveis. No programa, quanto maior a eficiência energética das usinas de etanol no processo de produção, maior a quantidade de títulos de descarbonização (os CBios) que podem ser emitidos e vendidos.
Entre seus compromissos ambientais, a Raízen divulgou a meta de reduzir a pegada de carbono do seu etanol em 10% até 2030.
O marco legal do gás natural e do saneamento são outros incentivos poderosos à indústria, diz Gardemann.
“A tecnologia evoluiu e agora, mais do que nunca, a tendência da descarbonização e a emergência da economia circular ganharam corpo”, diz Gardemann. “As condições para o biogás ganhar escala estão postas.”