Por que a Neste está trocando o petróleo pelo SAF

Depois de 70 anos, refinaria finlandesa abandona os fósseis e aposta tudo nos combustíveis verdes para a aviação; empresa avalia investimentos no Brasil

Avião abastecido com querosene sustentável
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Um mar de startups tenta viabilizar o combustível sustentável de aviação, mas entre as líderes da nova tecnologia está uma empresa de mais de 70 anos de história – no refino de petróleo.

A finlandesa Neste começou a olhar para uma alternativa aos combustíveis fósseis há mais de duas décadas, e agora vislumbra um futuro 100% renovável.

Os investimentos em pesquisa se traduziram em uma posição privilegiada na corrida para fornecer o SAF (sustainable aviation fuel), item fundamental para descarbonizar a aviação.

O querosene verde da Neste é produzido com matérias-primas residuais, como óleo de cozinha usado e restos de gordura animal. Desde o ano passado, parte dos insumos vem do Brasil – e o país já está na mira da companhia para futuros investimentos. 

“As opções para a redução de carbono ainda são muito limitadas, infelizmente. O uso de SAF é uma das alternativas disponíveis com impacto significativo, e é uma solução comprovada. Não é algo experimental, mas realmente uma solução comprovada para a redução de gases de efeito estufa”, disse a vice-presidente global sênior da Neste, Carrie Song, em entrevista ao Reset.

A transformação da empresa finlandesa vai se completar em 2035, quando sua maior planta, em Porvoo (Finlândia), terá sido convertida de refinaria de petróleo em hub de combustíveis e alternativas circulares e renováveis para a indústria de polímeros. 

Essa mudança na planta de seu país natal vai custar € 2,5 bilhões à Neste, que tem um valor de mercado de € 13,7 bilhões na bolsa de Helsinque. A companhia também está ampliando suas unidades em Cingapura e Rotterdam (Holanda), investimentos de € 1,6 bilhão e € 900 milhões, respectivamente.

Hoje a companhia produz 1,5 milhão de toneladas (Mt) de combustível sustentável de aviação por ano. O plano é chegar a 2,2 Mt no ano que vem, com a expansão da refinaria holandesa.

É um volume grande para o SAF, mas ínfimo diante das necessidades do setor. Estima-se que a produção do querosene verde seja equivalente a apenas cerca de 0,5% do consumo atual. Se o setor quiser atingir o objetivo do net zero em 2050, a produção vai ter de aumentar, e rápido.

Os últimos meses têm visto anúncios frequentes de iniciativas ligadas ao SAF. A fabricante europeia Airbus, junto com as companhias aéreas Air France-KLM e Qantas, se uniram a gigantes de outros setores para lançar o Sustainable Aviation Fuel Financing Alliance (SAFFA), um fundo de US$ 200 milhões para acelerar a produção de SAF. 

A partir do ano que vem, os aeroportos europeus terão de utilizar uma mistura de pelo menos 2% de querosene verde no combustível. A porcentagem vai aumentando gradualmente: 6% em 2030, 20% em 2035, 34% em 2040 até chegar a 70% em 2050 (o restante será compensado com créditos de carbono). 

Walk the talk

A demanda por SAF já existe hoje e tem crescimento garantido no futuro. O plano da Neste é se posicionar para ficar com um pedaço do mercado que hoje é dominado pelas grandes petroleiras globais.

Os primeiros investimentos da companhia em biocombustíveis foram feitos em 2005. A curva de aprendizado foi longa, e a nova linha de negócios demorou anos para estancar os prejuízos, mas desde 2018 os renováveis já são responsáveis pela maior parte dos lucros da empresa.

Com poucas exceções, o SAF produzido globalmente, incluindo o da Neste, tem como matéria-prima o óleo de cozinha reciclado – mas a disponibilidade desse insumo é limitada diante dos volumes que se esperam no futuro.

Várias outras alternativas podem ser utilizadas, desde que consigam uma certificação de baixas emissões.

A Neste estuda rotas produtivas a partir de algas marinhas e resíduos urbanos. “Uma porcentagem material do pessoal” está focado em pesquisa e desenvolvimento, diz Song. 

Tecnicamente, o etanol utilizado no Brasil poderia ser convertido em SAF, mas ele não atende ao critério de baixo carbono. A Raízen até agora obteve a certificação do Corsia, um órgão da ONU para a descarbonização da aviação, para utilizar o etanol de primeira geração como matéria-prima.

A percepção de Song é que a América Latina tem um nível de interesse crescente em soluções renováveis, ainda que menos avançado que nos mercados americano e europeu. “Nós temos algumas interações com diferentes stakeholders de biocombustível renovável no Brasil”, diz. 

Diesel verde

A transição energética da companhia inclui ainda o diesel verde, um biocombustível de segunda geração que pode substituir o de origem fóssil sem necessidade de adaptação em motores ou na estrutura de distribuição.

Conhecido como HVO, o diesel verde também mostra grande potencial no Brasil, diz Oscar Garcia, especialista em assuntos públicos na Neste. 

“Também trabalho com a Califórnia, onde o mercado de diesel hoje é 58% composto por diesel verde, e acredito que o Brasil pode replicar esse sucesso”, afirma Garcia.

“Estamos avaliando diversos investimentos no país e a maioria depende da aprovação do PL do Combustível do Futuro, por isso ainda não fizemos nenhum anúncio”, diz Garcia. O PL compila uma série de iniciativas para o estímulo à produção do combustível verde, já foi aprovado na Câmara e, agora, tramita no Senado. 

Song afirma que, no fim das contas, o objetivo da companhia é reduzir a pegada climática dos seus clientes. “Queremos realmente liderar a descarbonização dos portfólios de energia”, diz ela. “Levou tempo, mas gradualmente é possível ver o nível de conscientização e de demanda [por esses produtos] subindo.”