“Faltou recheio”. É esse o consenso entre diferentes especialistas do setor de energia e da área ambiental sobre a Política Nacional de Transição Energética, lançada no início da semana pelo governo federal.
O “pastel de vento”, como foi caracterizada a política, trouxe as linhas gerais do que será feito, mas deixou de fora prazos para o desenvolvimento de um plano nacional e orientações concretas para a descarbonização do setor.
E, para aumentar o mal estar com a falta de um plano concreto, paralelamente o governo publicou medidas que fomentam a indústria do gás natural – combustível fóssil que divide opiniões sobre sua participação na transição energética – e avançam na licitação de novos blocos para exploração de petróleo.
A política anunciada cria dois instrumentos: o Plano Nacional de Transição Energética (Plante), com o papel de sistematizar e consolidar as ações dos programas do governo na área, e o Fórum Nacional de Transição Energética (Fonte), um espaço permanente para debate com a sociedade civil.
“Depois de tantas menções pelo Ministério de Minas e Energia, o Plante ainda não veio de fato. O que sabemos é que ele vai ser elaborado, sem prazo definido, com base nessa política que dá comandos genéricos”, afirma Marta Salomon, analista do Instituto Talanoa.
A política pretende “orientar os esforços nacionais no sentido da transformação da matriz energética nacional para uma estrutura de baixa emissão de carbono”, de acordo com o texto, mas não faz qualquer menção ao estímulo de fontes renováveis, por exemplo.
Com apoio do BNDES e da FGV em seu desenvolvimento, o Plante deverá ser desenhado em concordância com outros planos governamentais, como o Plano Clima.
O Plano Clima, em elaboração, pretende ser a espinha dorsal da política climática do Brasil. São seus planos setoriais, que devem ser apresentados em meados do próximo ano, que compõem a parte mais delicada das discussões para transição dos segmentos da economia altamente intensivos em carbono, como óleo e gás ou agropecuária.
Paralelamente, o país também está definindo sua nova Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC, na sigla em inglês) para o clima, ou seja, a meta de descarbonização do país como um todo, alinhada ao Acordo de Paris.
O governo quer chegar com compromissos mais robustos à Conferência do Clima de Baku (COP29), em novembro. Mas a falta de uma direção deixa margem para que as metas na área energética “venham capengas”, diz um especialista.
Um olho no peixe, outro no gato
Na mesma solenidade do lançamento da Política Nacional de Transição Energética, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, anunciaram um decreto que regulamenta a Lei do Gás, de 2021.
O gás natural é visto por parte do mercado e membros do governo como “o combustível da transição”, uma vez que emite menos carbono do que o carvão ou o petróleo.
No entanto, ambientalistas batem na tecla de que ainda assim se trata de um combustível de origem fóssil e alguns especialistas em energia ponderam o custo-benefício de se fazer novos investimentos no setor hoje, quando o mundo precisa de recursos para alternativas renováveis e de baixo carbono.
O decreto traz mudanças para o mercado do gás e dá mais poder para a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), como a criação de um comitê de monitoramento do setor de gás e o controle do percentual de gás natural a ser reinjetado nos poços de petróleo – esse processo é usado para acelerar a extração do óleo e, hoje, a decisão de volume reinjetado cabe a cada empresa.
Na prática, a ideia é aumentar a oferta de gás no mercado. A medida foi bem recebida pelo Fórum das Associações Empresariais Pró-Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural, o Fórum do Gás.
Diretora-executiva do think tank Instituto E+ Transição Energética, Rosana Santos avalia que a expansão da infraestrutura para que esse gás chegue ao mercado consumidor, bem como a instalação de consumidores-âncora, ou seja, que confiram viabilidade aos investimentos nessa infraestrutura – tradicionalmente usinas termelétricas – exigem um “aprisionamento” de recursos, e podem dificultar a transição energética.
Recado cruzado
É mérito da nova política desenhar a estrutura de uma coordenação das ações do governo na área, diz Maria João Rolim, sócia do Rolim Goulart Cardoso Advogados. “A política ajuda, mas é preciso ver se de fato haverá uma integração. Ela não traz metas ou quem vai fazer o quê. Nesse sentido, é vaga, mas pode ser usada como uma âncora para outras políticas mais efetivas.”
Trazer o setor de óleo e gás para o debate sobre transição energética é essencial para que ela ocorra, diz Rolim. Mas, pondera, da forma como foi feito o anúncio do pacote de medidas, “a mensagem passada gerou confusão e é um pouco contraditória”. “Não posso dizer que eu vou numa direção e dar incentivo para a outra”, disse, referindo-se ao empurrão dado ao gás.
Também foram aprovadas resoluções para incentivar a exploração de petróleo e gás natural em novos blocos. Uma delas define que a Petrobras terá participação mínima de 40% no bloco Jaspe, outra traz parâmetros para a licitação de blocos sem necessidade de participação da estatal.
“Serão dez blocos licitados sem que a Petrobras tenha interesse. Essa é uma medida para beneficiar empresas que compraram ativos da estatal no passado e estão se constituindo num ecossistema de oil minors [empresas menores do setor]”, diz Gustavo Pinheiro, associado-sênior no think tank internacional E3G.
“O conceito já é estabelecido nos Estados Unidos e, com essas medidas, o Brasil caminha nessa mesma direção, o que acho preocupante.”
O CNPE também aprovou, na segunda-feira, uma resolução para a descarbonização das atividades de exploração e produção de petróleo e gás natural. O governo sinalizou que a medida deve contribuir para o fomento ao desenvolvimento tecnológico, por exemplo, mas ainda não há detalhes publicados. A ANP e a estatal Pré-Sal Petróleo (PPSA) terão de promover a transparência dos indicadores de emissões de gases do efeito estufa dos projetos de exploração e produção de combustíveis fósseis.
Transição justa
No texto, a política traz o conceito de transição energética justa como uma de suas premissas, e a define como o compromisso de minimizar os impactos negativos para comunidades, maximizar as oportunidades de desenvolvimento socioeconômico e o aumento da competitividade do setor produtivo.
“O conceito é super bonito, ninguém pode discordar, mas aqui cabe qualquer coisa”, diz Salomon, do Talanoa. “Se você olhar para a história do Brasil recente, em nome da transição energética justa, o governo Bolsonaro deu sobrevida à exploração de carvão, que é o pior dos fósseis, o que mais emite gás de efeito estufa, lá no Complexo Jorge Lacerda [no Rio Grande do Sul].”
Desde quando esteve em consulta pública, em abril, a apresentação do Plante já trazia “premissas bastante equivocadas”, afirma Pinheiro, da A3G. “Na documentação apresentada pelo MME e pela Empresa de Pesquisa Energética [EPE], você vê uma narrativa de que, se não explorarmos o gás e o petróleo, vamos perder empregos, receita e impostos. Só que, na análise, eles não consideram uma alternativa equivalente com fontes renováveis. Eles só contam metade da história, uma meia-verdade.”