Sem soluções milagrosas, arroto de gado vira dor de cabeça para frigoríficos

Quase um quinto das emissões de gases de efeito estufa do Brasil são decorrentes do processo digestivo dos rebanhos; redução do tempo de engorda e mudanças na dieta bovina estão em teste

Sem soluções milagrosas, arroto de gado vira dor de cabeça para frigoríficos
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Para fazer sua parte no combate à emergência climática, o Brasil terá de encarar um problema que pode render boas piadas, mas é muito sério: os arrotos e a flatulência do gado.

Quase um quinto das emissões de gases causadores do efeito estufa medidas no Brasil são decorrentes do processo digestivo dos rebanhos.

Somente a queima de combustíveis e os processos de alteração do uso de solo superaram os gases literalmente expelidos pelas 215 milhões de cabeças de gado criadas no país, de acordo com dados de 2019 do Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases do Efeito Estufa.

O desmatamento associado à criação de gado é um dos principais problemas ambientais relacionados à pecuária, mas vem ganhando protagonismo no discurso e nos planos dos frigoríficos para redução de emissões — ainda que sob olhares desconfiados dos mais céticos.

Mas o impacto da digestão bovina, inerente ao negócio e com amplo impacto climático, ainda é um tema que recebe pouca atenção.

Somente nos últimos meses os maiores produtores de carne do país começaram a apresentar suas estratégias para lidar com o problema.

A JBS, maior produtora de proteína bovina do mundo, anunciou em março a meta de neutralizar todas as suas emissões até 2040. O compromisso envolve tanto as próprias operações do frigorífico como a sua cadeia de valor, o chamado escopo 3. Mas a empresa não apresentou os detalhes de como pretende fazê-lo

A Marfrig não estabeleceu uma data limite para atingir a neutralidade. Segundo a companhia, o objetivo atual é reduzir em 35% as emissões de escopo 3 até 2035. “Parece pouco? Talvez”, diz Paulo Pianez, diretor de sustentabilidade da Marfrig. “Mas estamos sendo cuidadosos, dada a complexidade da coisa.”

De forma resumida, as gramíneas e grãos consumidos pelos bovinos são fermentados no trato digestivo. Esse processo, que recebe o nome de fermentação entérica, gera energia para o animal e tem como subproduto o gás metano.

É um processo natural, mas que acaba tendo grande impacto dado o tamanho do rebanho bovino brasileiro: 218 milhões de cabeças de gado, o maior do mundo.

A maior parte desse gás é expelida por via oral, na forma de eructação (arrotos) e pela respiração normal. Uma pequena porcentagem também sai via flatulência.

O metano, ou CH4, é particularmente problemático quando se fala de mudança climática: ele tem um impacto 80 vezes maior que o CO2 no efeito estufa. Em outras palavras, o metano na atmosfera é um dos grandes responsáveis pelo aumento da temperatura do planeta.

Trata-se de um problema conhecido, mas que teve poucas soluções promissoras até agora.

Redução da idade do abate

Uma das medidas em estudo pelos maiores frigoríficos, como JBS e Marfrig, é reduzir a idade do abate dos animais. As empresas trabalham junto aos produtores locais para fazer o abate aos dois anos de vida, em vez dos tradicionais quatro.

“Se consigo engordar um boi em dois anos, ele passa dois anos a menos emitindo gases”, diz Fábio Dias, diretor de relacionamento com pecuaristas da Friboi, marca que pertence à JBS. Isso significa mais tempo de confinamento. Segundo a JBS, a alimentação realizada em um dia de confinamento equivale a quatro dias em que o gado está no pasto.

Um estudo realizado em 2014 por pesquisadores da Embrapa, da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios, da Universidade de São Paulo e da Wageningen UR Livestock Research, na Holanda, apontou que, ao diminuir a idade do abate de um boi de 44 para 14 meses, há uma redução de 80% na emissão de CH4. 

Acelerar a engorda também é economicamente interessante para as empresas, já que o animal passa menos tempo sendo alimentado e cuidado até que seja abatido. “É um movimento de intensificação da bovinocultura brasileira”, afirma Dias. “Mas o gado sempre vai emitir [metano]. Não tem como zerar.”

Do capim limão ao tanino

A antecipação do abate é uma das várias medidas paliativas estudadas pela pecuária. Não há como lutar contra a biologia, mas alguns pesquisadores estudam mudanças na dieta que diminuam a produção de metano durante a digestão dos animais.

A JBS já realizou experiências com duas mudanças no cardápio.

A pedido da rede de restaurantes Burger King, o frigorífico utilizou capim-limão na fase final da alimentação dos bois confinados. A empresa de fast food se baseou em pesquisas feitas no México, nos Estados Unidos e na Suíça que mostraram uma redução de até 33% nas emissões de metano com o uso desse aditivo. 

Outro teste foi realizado com um suplemento à base de tanino, extrato vegetal encontrado em cascas, sementes e caules de frutos verdes. Produzido pela companhia italiana Silva Feed, o composto melhora a digestão e traz como bônus uma potencial redução do CH4 – a quantidade não foi medida com exatidão.

Ambos os casos se mostram promissores, mas há um problema: ainda faltam estudos detalhados que comprovem a eficácia dessas técnicas na redução das emissões, ao menos na contagem oficial disponibilizada no balanço de emissões de cada companhia.

“A forma de contabilizar a emissão do bovino ainda precisa evoluir”, afirma Dias. Segundo o executivo, com exceção da redução da idade do abate do animal, os outros métodos ainda não são reconhecidos internacionalmente. Ele se refere principalmente às métricas adotadas pelo Greenhouse Gas Protocol (GHG Protocol), consideradas o padrão ouro para a contagem de emissões.

Solução holandesa

O Bovaer, desenvolvido pela empresa holandesa DSM, deve ser outra arma do arsenal dos produtores locais. O Brasil foi o primeiro país do mundo a aprovar sua utilização – a autorização do Ministério da Agricultura saiu no final de agosto.

O suplemento nutricional deve chegar ao mercado brasileiro nos próximos meses. O produto promete reduzir em até 90% as emissões de gases do efeito estufa com a adição de uma colher de chá do suplemento à ração.

De acordo com a DSM, o uso do suplemento em um milhão de vacas tem efeito semelhante ao de plantar uma floresta de 45 milhões de árvores. O produto foi apontado como uma das dez inovações tecnológicas que ajudarão a alimentar o planeta sem destruí-lo, segundo o Instituto de Recursos Mundiais (WRI, na sigla em inglês).

As principais produtoras de carne bovina do Brasil já demonstraram interesse. JBS e Marfrig afirmam estar em contato com a companhia holandesa para estudar a aquisição do produto e viabilidade de uso em suas operações. Os primeiros testes devem ser realizados em breve.

“Começamos a conversar com a DSM para entender o produto, os custos e uma série de variáveis. Não basta só suplementar o animal, é preciso entender o impacto desta decisão num mercado em que cada centavo conta”, diz Pianez, da Marfrig.

Os maiores desafios estão em levar a tecnologia para toda a cadeia de produção de forma economicamente viável, além de contabilizar os resultados. A Marfrig mantém um canal de comunicação aberto com os produtores há quase dez anos, e as decisões terão de ser tomadas caso a caso, afirma Pianez.

A suplementação animal não é a única forma de reduzir as emissões de metano decorrentes do processo digestivo. Estudam-se maneiras de capturar o metano da atmosfera. Mas são inovações em estágio embrionário, se comparadas com aquelas para o sequestro de dióxido de carbono. 

Uma aposta está no desenvolvimento de soluções baseadas em zeólito, um minério capaz de absorver o CH4 do ar.

Também existem soluções inusitadas. Meses atrás, a Zelp, uma startup britânica, desenvolveu uma máscara para ser colocada sobre a boca do animal. A ideia é sugar os arrotos na fonte e filtrá-los em uma câmara que absorve o metano e o transforma em vapor d’água e dióxido de carbono. A solução pode chegar ao mercado em 2022.

Soluções como a máscara para o gado e a aceleração da engorda com maior confinamento, além de ainda serem experimentais, ensejam debates sobre o sofrimento adicional imposto aos animais. 

Carne de laboratório

Não existe fórmula mágica que elimine 100% das emissões associadas à pecuária. Mas há quem preveja uma substituição paulatina das proteínas animais por alimentos à base de planta nos próximos anos e, logo mais diante, por carne cultivada em laboratório. 

Sintetizar a carne em laboratório ainda é uma tecnologia que está dando os passos iniciais. Por aqui, a BRF fez um investimento na israelense Aleph, que está cultivando células bovinas in vitro. 

Mas produtos feitos à base de plantas que imitam bifes e hambúrgueres já são parte da oferta das gigantes brasileiras.

Em abril deste ano, a JBS anunciou a compra da Vivera, empresa com sede na Holanda e que é a terceira maior produtora de alimentos plant-based da Europa. A Vivera fornece substitutos de carne feitos à base de proteína vegetal em 25 países europeus. O negócio foi fechado em 341 milhões de euros. 

No Brasil, a JBS trabalha com a linha Incrível, da Seara, de hambúrgueres vegetais. Nos Estados Unidos, a companhia comercializa um produto semelhante sob a marca OZO, produzido por sua subsidiária local Planterra Foods.

Já a Marfrig firmou uma joint-venture com a gigante do processamento de alimentos Archer Daniels Midland, a ADM, e, juntas, lançaram uma linha de produtos à base de plantas no Brasil neste ano — a ideia é chegar ao mercado americano no ano que vem.

O objetivo é competir com startups pioneiras do segmento de carnes-imitação. A Beyond Meat abriu o capital na Bolsa americana em setembro de 2019 e hoje tem um valor de mercado de US$ 6,7 bilhões. A Impossible Foods deve estrear na bolsa no ano que vem. Analistas estimam que a empresa possa valer mais de US$ 10 bilhões.

(Com edição de Sérgio Teixeira Jr.)