Às vésperas da COP26, uma força-tarefa que reuniu mais de 300 especialistas e representantes da sociedade civil aponta caminhos para que o Brasil possa quase dobrar a ambição climática no Acordo de Paris, com cortes nas emissões de gases de efeito estufa que podem variar entre 66% e 82% até 2030.
O lançamento acontece apenas uma semana após o ministro do Meio Ambiente Joaquim Leite sinalizar que não fará a revisão da meta brasileira, apesar de um novo compromisso, divulgado no fim do ano passado, ter sido considerado um retrocesso. A meta brasileira atual é de 43% até o fim da década, considerando o ano base de 2005.
Segundo o estudo publicado hoje pela iniciativa Clima e Desenvolvimento, os principais resultados viriam do combate ao desmatamento, mas o documento também aponta a importância da criação de uma economia baseada na restauração florestal e da regulamentação de um mercado de carbono.
O trabalho — que contou com o endosso de governadores, prefeitos e empresários — será entregue a lideranças políticas brasileiras e apresentado na cúpula do clima, que começa em duas semanas, em Glasgow (Escócia).
A ideia é que o setor produtivo e a sociedade ofereçam um contraponto ao desinteresse demonstrado pelo governo em relação ao tema.
“Não vamos acusar ninguém, nem precisamos mais disso. O mundo já sabe quais as posições do governo Bolsonaro”, diz Natalie Unterstell, presidente do Instituto Talanoa e uma das coordenadoras da iniciativa.
“A ideia é criar menos ruído e mais emitir um sinal. Queremos que a comunidade internacional entenda que existe uma alternativa. Ela não precisa olhar para o Brasil só como um pária.”
Dois cenários
O maior problema brasileiro em termos de mudança climática, claro, é a destruição das florestas. Políticas de preservação e de reflorestamento são o ponto-chave do estudo realizado pela iniciativa – mas não as únicas.
O estudo apontou um cenário de referência para as emissões brasileiras e, a partir dele, dois caminhos alternativos. Os modelos foram desenvolvidos pela Centro Clima da Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A projeção-base considera um ligeiro aumento do desmatamento até 2023 e posterior estabilização, sem medidas adicionais de mitigação. Se continuarmos neste ritmo, o país não vai atingir sua meta voluntária – e alvo de críticas internacionais, por ser muito tímida – para 2030, muito menos chegar à neutralidade em 2050.
O primeiro exercício prevê uma redução de 66% das emissões brasileiras em 2030 (em comparação com o ano-base de 2005). Dois terços das reduções de gases causadores do efeito estufa viriam da mudança do uso da terra: parte seria alcançada com combate ao desmatamento e parte com programas de restauração de áreas degradadas.
O terço final seria alcançado com uma política de precificação do carbono, ou seja, instituindo mecanismos para a compra a venda de créditos e uma sobretaxa no uso de combustíveis fósseis.
O segundo cenário descrito pela iniciativa Clima e Desenvolvimento é ainda mais ambiciosa e aponta uma redução de 82% das emissões de GEE até 2030.
Para isso, seria necessário essencialmente acabar com o desmatamento da Amazônia e da Mata Atlântica, além da criação de mecanismos de penalização para os consumidores de combustíveis fósseis.
Em ambos os casos, o país chegaria à neutralidade de emissões em 2050.
O desafio prático
Transformar essas visões em realidade depende de vários agentes. O governo federal é um dos mais importantes, especialmente no que diz respeito ao cumprimento das leis de proteção do meio ambiente.
Mas os autores fazem duas ressalvas importantes. A primeira: governos vêm e vão, mas o problema continua. “Estamos só começando o processo. É quase um esboço”, diz Ana Toni, diretora do Instituto Clima e Sociedade. Ela diz que as ideias serão levadas às candidaturas que disputarão as eleições do ano que vem.
A segunda ressalva diz respeito ao papel do Congresso, dos governos municipais e estaduais e da iniciativa privada.
Unterstell aponta que o grupo já obteve um resultado prático. O governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, retirou o apoio ao projeto da Mina Guaíba, que pretendia explorar carvão no estado.
O estudo também aponta que somente 0,04% do orçamento é destinado a políticas climáticas. O número mais adequado, de acordo com o relatório Stern, seria 100 vezes superior – e a decisão passa pelos parlamentares.
Mercado de carbono
Outro ponto fundamental que está parado no Congresso é a regulamentação do mercado de carbono, que poderia responder por até um terço das metas relativas às florestas.
“Nosso modelo prevê um preço que chegaria a US$ 19 por tonelada em 2030, que é o valor do carbono hoje na Coreia do Sul”, diz Emilio La Rovere, da Coppe.
Esse valor, considerado baixo, viabilizaria ações privadas de restauro de áreas nativas e replantação de florestas, além de incentivar medidas de eletrificação de frotas, por exemplo.
“O setor produtivo está pronto para receber o mercado de carbono”, afirma Rovere. “Não se trata de penalizá-lo, mas sim assegurar nossa presença no mercado internacional”, pois as demandas por rastreabilidade e produtos de baixas emissões serão itens fundamentais para a competitividade da economia brasileira.
La Rovere também aponta que parte dos recursos obtidos com a taxação do carbono teriam de ser devolvidos na forma de programas de transferência de renda, uma espécie de “bolsa carbono”, e com redução de impostos sobre o trabalho.
Clima e desigualdade
Este é outro ponto central dos cenários desenhados pela iniciativa Clima e Desenvolvimento: uma nova política de desenvolvimento econômico não pode deixar de lado a questão da desigualdade.
A premissa básica do trabalho é indicar a convergência entre o desenvolvimento econômico e a justiça social sem abrir mão das preocupações com o clima.
“Não dá mais para ter uma política climática isolada de planos de desenvolvimento. Os planos de recuperação econômica dos Estados Unidos e da Europa, que têm os compromissos ambientais como pontos centrais, são a prova disso”, afirma Unterstell.
O estudo indica que até 150.000 empregos podem ser criados no cenário mais ambicioso, nos setores de serviços, transportes, florestas e biocombustíveis.
“Podemos reduzir as emissões hoje. O trabalho mostra que conseguimos resultados num horizonte curto”, diz o ex-ministro da Economia Joaquim Levy, um dos participantes da iniciativa. “Tenho convicção de que são políticas transformadoras e inclusivas.”