Bonn – A COP30 começou. As duas semanas de reuniões preparatórias em Bonn, na Alemanha, terminaram na madrugada desta sexta (27) e deixaram abertos os caminhos para uma conferência de sucesso em Belém. Dadas as divisões acirradas dentro das salas de negociação e a instabilidade geopolítica global, foi um resultado positivo para a presidência brasileira.
Os momentos iniciais das negociações sugeriram um desastre em potencial. O descontentamento com o acordo de financiamento climático obtido na COP do ano passado voltou com força. O assunto dinheiro se insinuou por todos os temas da agenda.
“Era um grande elefante presente em todas as salas: de gênero, de adaptação, de mitigação, do balanço global”, diz Natalie Unterstell, presidente do centro de estudos climáticos Talanoa e colunista do Reset. “Infelizmente ficou claro o baixo nível de confiança que existe entre as partes hoje.”
O financiamento foi um obstáculo nos três principais itens da agenda da COP30: o Programa de Trabalho de Transição Justa (JTWP), as conversas sobre o Balanço Global do Acordo de Paris e as Metas Globais de Adaptação (GGA).
Em todos eles, a questão dos recursos foi colocada nos seguintes termos pelos países em desenvolvimento: de que adianta assumir compromissos se não teremos dinheiro para executá-los?
Os chamados meios de implementação foram um dos motivos que travaram as conversas sobre as metas de adaptação. Um documento consensual só foi obtido depois da meia-noite na Alemanha, quase 12 horas depois da previsão de encerramento da reunião.
Bonn não garante o sucesso de uma COP nem tem o poder de tomar decisões. Mas a reunião é o termômetro mais importante para a conferência que acontece alguns meses depois. Não houve impasses insuperáveis, e as bases estão dadas para que as discussões continuem em Belém.
A exceção foi a incerteza logística. A pouco mais de quatro meses do início da COP30, muitos países não garantiram sua hospedagem por causa dos preços exorbitantes das diárias de hotéis e dos aluguéis temporários. Um representante do grupo de países africanos disse estar no aguardo de uma “resposta adequada” para o problema.
Vitórias brasileiras
“O balanço dessas duas semanas é muito positivo. Andamos para a frente, o que nem sempre acontece em Bonn”, disse ao Reset Ana Toni, diretora-executiva e segunda na hierarquia da presidência da COP30. “Essas negociações não acontecem no vácuo. Enquanto a gente estava aqui, novas guerras começaram, bombardeios [dos Estados Unidos contra o Irã].”
A conversa mais difícil envolve o que fazer com o Balanço Global do Acordo de Paris, ou GST, na sigla em inglês. Este é o documento aprovado dois anos atrás, na COP de Dubai, que fez a primeira menção em 30 anos ao grande causador do aquecimento global, com a frase “uma transição que se afaste dos combustíveis fósseis”.
De um lado, alguns países querem avançar para medidas mais práticas, talvez com prazos ou determinando quem deveria parar primeiro de produzir petróleo, gás e carvão. Outros, liderados pela Arábia Saudita e pela China, se opõem a qualquer tipo de detalhamento, meta ou até mesmo um acompanhamento formal dessa transição.
De Bonn, saem dois textos para que os negociadores continuem discutindo em Belém. As expectativas de alguma resolução concreta são pequenas. Mas pelo menos todas as opções seguem na mesa, o que foi considerado um êxito.
O tema das metas de adaptação, considerada a menos espinhosa antes do início de Bonn, acabou sendo a mais difícil. Um acordo só foi obtido no fim da noite de quinta, mais de oito horas depois do horário previsto para o encerramento da reunião.
O objetivo é chegar a um conjunto de indicadores objetivos e universais para medir o grau de preparação de países para um clima que já mudou. Hoje elas são quase 500. Um painel técnico vai reduzi-las para cerca de 100.
Essas métricas terão de incluir indicadores de meios de implementação que permitam mensurar o acesso, a qualidade e o financiamento. Este foi um dos pontos que emperraram as discussões até a última hora.
Transição justa
Dos três temas prioritários para os brasileiros, o que teve os melhores resultados foi o relacionado à transição justa. Esse item de negociação nasceu para tratar dos impactos econômicos de uma economia de baixo carbono sobre trabalhadores, como mineiros de carvão que têm seus empregos ameaçados.
O documento que serve de ponto de partida para Belém amplia o escopo da discussão e inclui menções a gênero, raça e especificamente afrodescendentes.
“São demandas importantes para a sociedade civil brasileira e mundial, que a diplomacia brasileira levou adiante”, diz Stela Herschmann, especialista em política climática da rede de ONGs Observatório do Clima. “Ainda não temos um texto pronto para ser aprovado em Belém, mas vamos sair de uma base muito boa.”
Houve uma outra vitória: as discussões de transição justa absorveram as medidas comerciais unilaterais baseadas em justificativas climáticas. O principal exemplo delas é o CBAM, sobretaxa que a União Europeia vai cobrar de importados como aço e cimento, que embutem muito carbono.
O bloco negociador LMDC (sigla em inglês para países em desenvolvimento com pensamento semelhante) queria uma discussão separada sobre essas barreiras, o que ameaçou tirar dos trilhos a reunião na Alemanha.
A embaixadora Liliam Chagas, negociadora-chefe do Brasil, afirma que a solução encontrada faz sentido. “Além de financiar sua própria transição [para uma economia de baixo carbono], esses países enfrentam essas medidas [barreiras comerciais].”
Financiamento
O tema das “medidas comerciais unilaterais”, como é designado nas negociações, interessa ao Brasil, um exportador de commodities.
Ele deve ganhar importância nas COPs daqui em diante e representa um dos nós da colaboração global pelo clima: ao mesmo tempo que podem ser interpretadas como um incentivo à descarbonização, essas barreiras comerciais impõem novos ônus econômicos a países que precisam de ajuda financeira para transformar suas indústrias.
No fundo, esse “protecionismo verde” é mais uma manifestação do tema que perpassa todas as COPs: quem tem que pagar a conta? A pergunta será cada vez mais evidente nessa fase de implementação das decisões tomadas em mais de 30 anos de diplomacia.
Na COP29, ficou decidido que os países ricos – historicamente responsáveis pelas emissões de gases de efeito estufa que causam o aquecimento do planeta – teriam de chegar a 2035 provendo US$ 300 bilhões anuais em financiamento climático.
Esse valor está longe do US$ 1,3 trilhão apontado por um painel de economistas como o dinheiro necessário para que os países mais pobres e vitimados pela emergência do clima possam se descarbonizar e principalmente se adaptar a um clima que já mudou.
Brasil e Azerbaijão foram encarregados de apresentar na COP30 um plano para passar dos bilhões ao trilhão. Batizado de Mapa do Caminho de Baku a Belém, esse documento não envolve negociação nem será objeto de uma decisão.
Em Bonn, entretanto, foram ouvidas queixas. Alguns países pediram mais transparência. “Houve apenas uma consulta às partes. Não consideramos isso suficiente, precisamos de diálogos com mais profundidade. Ainda não sabemos os contornos [do documento]”, disse ao Reset Raju Pandit, um dos responsáveis por negociar financiamento climático em um bloco negociador chamado LDC, ou países menos desenvolvidos.
Ana Toni afirmou que contribuições estão sendo consideradas, mas o mandato recebido é o de apresentar um reporte. “As partes então vão decidir o que fazer. Até porque algumas das recomendações, como a reforma dos bancos multilaterais, não pode ser decidida aqui [no âmbito da Convenção do Clima]”, diz a diretora-executiva da COP30.
Presidência brasileira da COP30
Além de mudanças nos bancos multilaterais, o documento deve apresentar soluções inovadoras, como o programa Eco Invest, lançado pelo governo brasileiro para que investidores estrangeiros financiem projetos verdes no país.
Jordan Dilworth, do centro de estudos climáticos americano E3G, afirma que esse mapa do caminho precisa “de credibilidade, abrangência e impacto no mundo real” para que haja adesão e ele seja considerado uma conquista da COP30. “Precisamos de um plano de ação para implementá-lo, para que ele mereça confiança”, diz Dillworth.
Esta avaliação está no centro de outra prioridade da diplomacia brasileira à frente da COP30: passar das negociações à prática.
Não é uma questão simples. As decisões que serão tomadas em Belém, como todas as outras das últimas três décadas, dependem de consenso entre os quase 200 países que fazem parte da Convenção do Clima. A necessidade de concordância unânime já significa que muitos do que é resolvido representa o máximo possível em termos de acomodar as diferenças.
Além disso, as COPs são negociadas por governos nacionais. Eles têm poderes limitados para colocar em prática muitas das determinações da conferência. A implementação depende do envolvimento de vários outros atores, como empresas, sociedade civil e governos regionais.
O ‘mundo real’
Um dos mecanismos criados pelo Acordo de Paris é a chamada
agenda de ação, um esforço para envolver o “resto do mundo” que não está formalmente representado nas COPs.
Tipicamente ela era usada pelo país anfitrião para dar destaque a alguns assuntos de seu interesse. Na COP26, por exemplo, houve ênfase no setor financeiro. Em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, falou-se de iniciativas de reduzir as emissões das empresas de petróleo (mas não da transição para outras fontes de energia).
Uma das grandes inovações da presidência brasileira na COP30 foi estabelecer um elo direto entre as decisões da COP e a agenda de ação. O plano é basear os esforços no Balanço Global do Acordo de Paris, um documento que aponta a necessidade de uma “transição que se afaste dos combustíveis fósseis” e da triplicação das energias renováveis, além da proteção e restauração das florestas.
Essa fase das COPs de implementação que se inaugura em Belém vai depender desse envolvimento – ou de um mutirão, como diz o embaixador André Corrêa do Lago, presidente da COP30.
Essa mobilização vai acontecer em seis eixos, incluindo energia, indústria, florestas, cidades e desenvolvimento humano, conforme a mais recente carta de Corrêa do Lago para a comunidade internacional.
Essa tentativa de diminuir a distância entre o que diplomatas negociam e o mundo lá fora foi recebida de forma positiva. Mas o conteúdo da agenda de ação não passa pelo crivo dos países nem tem força de lei internacional, como as decisões da COP “oficial”.
“A agenda de ação é importante e temos que fazer o máximo possível com ela. Mas uma das preocupações que ouvi nos corredores é que ela não pode tomar o lugar das negociações nem tirar a importância da liderança em nível nacional”, diz o americano Alden Meyer, um dos maiores entendidos do mundo em diplomacia climática.
Inovação
Fernanda Carvalho, líder em políticas climáticas da ONG WWF Internacional, tem uma opinião positiva dessa inovação da presidência brasileira.
“O acesso às COPs tem melhorado, mas elas ainda são um espaço fechado e exigem uma curva de aprendizado grande para que ela seja entendida. Por outro lado, a gente só vai ter ação no chão se os sinais políticos saírem daqui. São coisas complementares”, afirma ela.
Natalie Unterstell, do Talanoa, aponta três brechas – abismos em alguns casos – a encurtar. Uma delas, que vai estar em evidência em Belém, é a do financiamento para os países mais vulneráveis.
Outra é a da “ambição”, outra palavra que se ouve muito nas COPs. Precisamos ser mais ambiciosos na descarbonização para evitar que a crise climática se agrave no futuro.
A terceira é a “brecha da realidade”, diz Unterstell. “A gente está sem capacidade de lidar com os eventos climáticos extremos. Não fazemos investimentos em resiliência. Isso coloca para os cidadãos, para o mundo lá fora, uma percepção muito negativa do multilateralismo. Como é que ele vai dar respostas para o que a gente está vivendo?”