OPINIÃO: Mercado de capitais não pode ser refúgio de desmatadores

CVM, Previc e Susep estão atrasados na agenda de riscos ASG em relação ao BC, levando a assimetria regulatória, escreve Luciane Moessa

Lupa com cabo laranja sobre gráficos coloridos, simbolizando análise de dados
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O fato de o Brasil, diferentemente de outros países, contar com quatro reguladores financeiros distintos – Banco Central, CVM, Susep e Previc – cria situações inusitadas quando não há alinhamento entre as estratégias de atuação. A falta de simetria, infelizmente, tem estado presente na agenda ASG (ambiental, social e de governança corporativa ou ESG, na sigla em inglês), possivelmente devido a diferenças estruturais entre eles. 

Empreendimentos são financiados basicamente via crédito, o que recai na área de atuação do BC, e via investimentos, o que está na área de atuação dos outros três, tendo o mercado de crédito no Brasil quase três vezes o valor do mercado de capitais (uma das debilidades de nossa economia). 

Assim, o fato de o BC ter sido pioneiro na agenda ASG em comparação aos demais certamente é positivo – e o caso do crédito rural, em que a regulação é muito mais clara e específica, alinhada a políticas públicas socioambientais, se destaca em relação às operações de crédito em geral, para as quais a regulação é muito mais genérica ou principiológica e, como se diz no mundo anglo-saxão, “não tem dentes”. 

Mas os avanços do BC na regulação do crédito não podem implicar que CVM, Susep e Previc possam permanecer em atraso, sob pena de assistirmos a um fenômeno que parece já estar acontecendo no agronegócio brasileiro: empreendimentos envolvidos com irregularidades ambientais e sociais (os exemplos mais frequentes são o desmatamento ilegal e o trabalho análogo ao escravo, mas há muitos outros) estão cada vez mais se financiando com instrumentos do mercado de capitais. 

Nesse âmbito, temos a Susep e a Previc com competência para regular os chamados “investidores institucionais”, ou seja, seguradoras e entidades de previdência (conceito que se opõe  aos “investidores de varejo”, ou seja, pessoas físicas que investem diretamente). Em ambos os casos, a atuação dos investidores costuma (mas isso não é obrigatório) estar intermediada por gestoras de investimentos (as “asset managers”), que são alcançadas pela regulação do BC quando pertencem a um conglomerado bancário, mas não quando são independentes. 

Tanto para as independentes quanto para as primeiras, sua atuação é regulada pela CVM naquilo que diz respeito às condições em que produtos financeiros de mercado de capitais são oferecidos. 

A CVM tem um papel fundamental no mercado de investimentos, que é regular o grau de transparência nas informações oferecidas a investidores. Isso abrange tanto as informações a serem divulgadas pelas empresas que captam recursos (daí os avanços recentes na agenda ASG, com a Resolução 193/2023, por exemplo), quanto as informações a serem divulgadas com relação a produtos financeiros de investimentos em geral, como títulos de dívida e fundos de investimentos , além das metodologias adotadas por agências de risco. 

No caso da Susep e da Previc, embora a primeira o tenha feito com mais profundidade, ambas já mencionam em suas normas sobre gestão de investimentos a necessidade de incorporar a gestão de riscos ASG, aí incluídos os climáticos, naturalmente. 

Já no caso da CVM, se por um lado tem havido preocupação com a divulgação de informações ASG pelas empresas, e também com a necessidade de transparência nos produtos financeiros com rótulos ASG (Resolução 175/2022 tratou disso), o regulador ainda está na estaca zero quando se trata da transparência sobre a gestão de riscos ASG associados a produtos financeiros. 

O agro no mercado de capitais

E, embora não sejam os únicos, os maiores exemplos disso são os produtos específicos do agronegócio, sendo os mais usados as CPRs, CRAs, LCAs e o fundo de investimentos do tipo Fiagro. 

Esses instrumentos ganharam enorme destaque como fonte de recursos para o agro brasileiro, atingindo cifras que já concorrem em relevância com o crédito rural. 

O montante de recursos públicos orçamentários, mais os recursos obrigatórios (via setor bancário), constitui o chamado Plano Safra, que em 2023/2024 tem orçamento de  R$ 434 bilhões, sendo R$ 38,4 bilhões oriundos do BNDES. O conjunto das operações de crédito rural, segundo dados da Matriz de Crédito Rural concedido do Banco Central, alcançou R$ 367 bilhões de setembro de 2022 a agosto de 2023. 

Já o montante de recursos aportados usando veículos do mercado de capitais, via empresas, investidores ou mesmo recursos dos próprios bancos, atingiu em julho de 2023 o valor de R$ 847,66 bilhões, segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), via instrumentos como CPRs, LCAs, CRAs e Fiagro. 

Vale notar que, no caso dos recursos do crédito rural, o número diz respeito a novos desembolsos no ano safra, enquanto no caso dos instrumentos estamos falando do estoque existente de papéis com prazos de vencimento diferentes, que foram emitidos em diferentes pontos no tempo. Embora um seja dado de fluxo e o outro de estoque, fica clara a relevância do mercado de capitais para o financiamento do setor. 

A CPR, criada em 1994, é um dos instrumentos mais usados para financiar o agronegócio, sendo o seu estoque em julho de 2023 de mais de R$ 266 bilhões, segundo dados do MAPA, com crescimento de 57% em relação a julho de 2022. No entanto, não há normas da CVM que regulamentem o instrumento ou exijam qualquer diligência socioambiental – há apenas um decreto federal tratando da CPR verde, mas nem mesmo nesse caso há essa exigência. 

A norma da CVM que tratou de títulos verdes em geral tampouco trata do tema. Contudo, em outubro de 2023, investigação realizada pela Unearthed e por “O Joio e o Trigo” que repercutiu no Financial Times, na imprensa brasileira e em outros veículos internacionais, trouxe evidências da emissão de títulos verdes por empresas envolvidas com ilícitos ambientais graves, inclusive (mas não se limitando) a desmatamento ilegal.   

Já a LCA, criada em 2004 e o mais utilizado desses instrumentos (quase R$ 424 bilhões em estoque em julho de 2023, com aumento de 49% em relação a julho de 2022, segundo dados do MAPA), deve ser emitida por instituição financeira, portanto sujeita à fiscalização do BC. 

Uma parte dos recursos captados via LCA deve ser direcionada para o crédito rural e fica sujeita a exigências socioambientais. Mas o restante pode servir de lastro para CPRs, CRAs e CDCAs e, nesses casos, não há qualquer exigência de diligência ambiental prevista na legislação nem em normas da CVM, nem para a emissão de LCA nem para os demais títulos.

Há boas chances, porém, de que o grau de diligência usado pelas instituições financeiras para o crédito rural seja estendido para as demais operações, até por conta das demais regras do BC sobre a matéria, que exigem a gestão de riscos socioambientais e climáticos em todas as operações de crédito.

O CRA, com R$ 111 bilhões em estoque, exige a participação de companhias securitizadoras para sua emissão, mas a norma da CVM tampouco impôs a elas qualquer diligência relativa a riscos de desmatamento ou outro de natureza ambiental. 

Já o Fiagro, criado em 2021, tem tido um crescimento explosivo – o volume de investimentos nesse tipo de fundo aumentou 170% entre 2022 e 2023. A CVM acabou de publicar consulta pública para rever a norma que elaborou sobre o fundo, mas a minuta não contemplou absolutamente nenhum aspecto ASG, apesar de indícios de que o veículo tem sido usado para financiar imóveis e empresas envolvidos com desmatamento ilegal e trabalho análogo ao escravo. 

A SIS contribuiu nessa consulta pública apontando os riscos climáticos e socioambientais altíssimos do agronegócio, setor ao qual estão ligadas mais de 70% das emissões de gases de efeito estufa brasileiros. É fundamental que os reguladores financeiros compreendam cada vez mais a necessidade de alinhamento de sua atuação à agenda climática e socioambiental do país, que tem caráter absolutamente transversal, como bem salienta a Ministra Marina Silva.

* Luciane Moessa é diretora executiva e técnica da Associação Soluções Inclusivas Sustentáveis (SIS).