COLUNA - ANA LUCI GRIZZI

Estabilidade financeira? Coloque risco climático e capital natural na conta

Pesquisa anual do BC mostra que, na leitura dos bancos, secas e escassez de recursos naturais causam risco de inadimplência e inflação

Estabilidade financeira? Coloque risco climático e capital natural na conta
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Na primeira parte deste artigo, publicada na semana passada, tratei dos avanços regulatórios do Banco Central para o reporte ambiental e climático dos bancos. Nesta segunda parte, trato da relação entre sustentabilidade e mudanças climáticas e a estabilidade do sistema financeiro.

Em 2018, fiz uma capacitação para ocupar assentos em conselhos de administração e, na aula de economia, fui apresentada aos relatórios de inflação dos bancos centrais no mundo. Me dediquei à análise comparativa de alguns, tendo como base o Relatório de Inflação do Banco Central do Brasil de setembro daquele ano. O assunto principal avaliado era a greve dos caminhoneiros e seu impacto na economia brasileira.

A greve tinha sido motivada pelo aumento do preço do diesel. Diesel, combustível fóssil, com alta emissão de gases de efeito estufa. Mas, o relatório não continha sequer uma linha sobre a variável ambiental aplicável àquele cenário, seja no viés de riscos, seja no viés de oportunidades.

De lá pra cá, muita água rolou e mantive minha curiosidade sobre como o novo contexto da dimensão Sustentabilidade na Agenda BC# iria se refletir nos relatórios de inflação. 

Para minha satisfação – e para a saúde da nossa economia –, as avaliações de sustentabilidade são hoje parte integrante desses relatórios. 

Outro relatório do Banco Central, o de Estabilidade Financeira (REF), tem trazido informações relevantes sobre a interação entre temas ambientais, climáticos e sociais e a estabilidade do sistema financeiro. A última edição traz no Boxe 1 os dados valiosos do resultado da Pesquisa de Estabilidade Financeira – Riscos Climáticos de 2024.

Essa pesquisa é realizada anualmente pelo Banco Central para coletar percepções das instituições financeiras sobre os efeitos de riscos climáticos na estabilidade financeira do Sistema Financeiro Nacional. 

Analisemos alguns dos seus resultados, considerando que os potenciais efeitos dos riscos climáticos no sistema têm preocupado mais as instituições financeiras comparativamente aos resultados de 2023.

Riscos Climáticos Físicos

Os resultados da pesquisa indicam que, na leitura das instituições, secas, escassez de recursos naturais e desertificação com maior severidade ameaçam a estabilidade financeira via aumento da inadimplência e inflação. Danos aos ativos e processos produtivos, por sua vez, ameaçam a estabilidade financeira via perdas e aumentos de custos para os tomadores e aumento da inadimplência.

Seca é o risco físico agudo de maior impacto esperado nos ativos das instituições financeiras no longo prazo. Já escassez de recursos naturais e desertificação são os riscos físicos crônicos mais relevantes com impacto moderado esperado no longo prazo.

Conglomerados financeiros que possuem seguradoras também avaliam que o aumento da frequência e intensidade dos desastres naturais leva ao aumento da sinistralidade, impactando sua solvência e a estabilidade do sistema financeiro.

Riscos Climáticos de Transição

Ainda segundo a pesquisa, custos adicionais de adequação dos processos produtivos e dos modelos de negócio a novos requisitos legais e regulatórios atrelados à descarbonização ameaçam a estabilidade financeira via aumento da inadimplência.

De um total de 83 bancos que responderam a pesquisa, menos da metade gerencia riscos de transição. 

Sem gerenciamento, as instituições indicaram que a avaliação dos riscos de transição é realizada via cenários desenhados por entidades globais (NGFS e BCE, por exemplo), análise setorial e monitoramento de operações e clientes relevantes.

Aqui cabe uma reflexão: se, como mostrou a pesquisa, mudanças na regulação com “novos” custos de observância ameaçam a estabilidade do sistema financeiro via aumento da inadimplência, por que não vemos o mercado se movimentar de forma articulada para discutir como regular carbono, por exemplo, com custos de observância palatáveis que não nos levariam à inadimplência?

Contestar sobre mais um custo não ajuda a encontrar soluções. Conseguir reunir os interessados para decidir o que é aceitável me parece um caminho mais eficiente.

Na prática, segundo os resultados da pesquisa, a estimativa de sensibilidade de setores a metas de redução de emissões de gases de efeito estufa é construída via monitoramento e avaliação das operações, clientes e concentrações das carteiras.

A pesquisa aponta ainda que mudanças no padrão de consumo, precificação das emissões, mudanças regulatórias e barreiras à exportação também poderiam impactar negativamente os resultados de empresas em alguns setores e a oferta e demanda de produtos demandando atualização de processos produtivos e modelos de negócio.

Ponto em comum

Risco de crédito derivado de inadimplência é o efeito mais relevante dos riscos climáticos físicos e de transição para as instituições financeiras, segundo a pesquisa. 

A inadimplência resultante de risco climático físico derivaria da perda de renda ou riqueza dos clientes em razão de queda na produtividade por interrupção de operação ou ociosidade dos ativos; redução do poder de consumo; redução de produtividade do agronegócio. 

Já a inadimplência resultante de risco climático de transição, segundo as respostas das instituições,  derivaria do aumento de custos de observância de novas regulações e barreiras de mercado aliadas a políticas internacionais (leia-se CBAM e CS3D, por exemplo).

Uma provocação

Focando nos riscos climáticos físicos, a pesquisa avaliou secas, escassez de recursos naturais e desertificação, os quais derivam diretamente da mudança de temperatura cujo efeito atinge todo o ecossistema. 

Isso demonstra que quando analisamos consequências do risco climático físico materializado, estamos avaliando quanto o capital natural para uso  econômico e social é impactado em termos de qualidade e/ou disponibilidade. 

Percebe onde quero chegar? 

É viável discutir riscos à estabilidade financeira com ênfase em clima sem creditar a devida importância isonômica aos riscos de dependência de capital natural (ou riscos de natureza, conforme a TNFD)? Exemplo: mudanças de temperatura podem levar a estresse hídrico que reduza ou paralise operações cujos processos produtivos dependam de água. Aqui, a versão fidedigna seria avaliar “riscos de dependência de natureza.” 

A moral da história é: deixe seu viés inconsciente ou preconceito do lado de fora da sala em relação à sustentabilidade. Sustentabilidade impacta bottom line. Sem sustentabilidade no gerenciamento de riscos e na sua estratégia, o ROI (return on investment, ou retorno do capital investido) do seu negócio no longo prazo está ameaçado. 

A transição econômica para baixo carbono, bioeconomia e economia circular é irreversível. Ainda bem. Todos sairemos ganhando, se formos inteligentes agora.

* Ana Luci Grizzi é sócia da EY, especialista em sustentabilidade, professora e palestrante