Porteira aberta: Banco Central decepciona em proposta de crédito rural sustentável

Textos abrem espaço para retroagir em relação às restrições já existentes e trazem pouca segurança jurídica para os bancos, apontam especialistas. Consulta pública vai até dia 23 de abril

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Primeiro passo da aguardada agenda de sustentabilidade do Banco Central, a proposta para definir critérios de sustentabilidade no crédito rural foi recebida com decepção por ambientalistas, advogados e participantes do mercado. 

Em vez de apertar critérios e subir a régua da sustentabilidade para induzir capital para boas práticas, a avaliação é que os dois textos propostos têm o efeito contrário: abrem a porteira para retroagir em relação às restrições já existentes e trazem pouca segurança jurídica. 

“O novo texto abre uma brecha para flexibilizar as restrições de crédito estabelecidas desde 2008 e que foram importantes aliadas no combate ao desmatamento e à conformidade socioambiental da agropecuária brasileira”, diz Gustavo Pinheiro, coordenador do portfólio de economia carbono neutro Instituto Clima e Sociedade.

Os documentos ficarão em consulta pública até 23 de abril e ainda podem sofrer modificações antes de serem publicados.

Mas foram um balde de água fria para quem esperava uma vanguarda da autoridade monetária na condução da política de sustentabilidade e nas questões climáticas em meio ao vácuo do poder Executivo no assunto. 

No último ano, o presidente do Banco Central Roberto Campos Neto se colocou como interlocutor do mercado e de investidores internacionais na agenda ambiental e climática, elegendo o tema como crucial para a estabilidade monetária. 

“O Banco Central está perdendo uma ótima oportunidade de mostrar que tem autonomia. Infelizmente, se mostrou mais alinhado com o Ministério do Meio Ambiente do que com aquilo que se espera do Brasil na seara internacional”, afirma Sérgio Leitão, diretor do Instituto Escolhas, associação civil sem fins lucrativos que se dedica a discussões sobre economia e sustentabilidade. 

Na prática 

Por meio de duas resoluções, uma do Conselho Monetário Nacional (CMN) e outra do próprio BC, a proposta em consulta pública estabelece a categorização dos empreendimentos tomadores de crédito rural em três tipos: os que não podem receber crédito rural, os que podem ser considerados ‘sustentáveis’ e uma categoria intermediária. 

É nesta última que mora o maior problema. 

Segundo o texto, poderão receber crédito rural, mas com uma “sinalização de risco socioambiental”, terras que estejam inseridas em áreas embargadas pelo Ibama ou pelo ICMBio ou que estejam em área de preservação permanente, reserva legal ou reserva particular do patrimônio natural. 

Enquadram-se nessa categoria até empreendimentos “cujos beneficiários tenham sido autuados por trabalho informal ou infantil nos últimos três anos”. 

“Na prática, estão reconhecendo que existe uma desconformidade e liberam mesmo assim a concessão de crédito”, diz Sérgio Leitão, do Instituto Escolhas. 

Ana Luci Grizzi, sócia do Veirano Advogados, afirma que a proposta precisará ser lapidada para trazer segurança jurídica para os próprios bancos. 

“Faz sentido atribuir qualificação de risco socioambiental e prosseguir com a concessão de crédito? Nesse cenário, pode se abrir um flanco para discutir eventual responsabilidade ambiental de quem concede crédito nessas condições”, questiona a advogada. 

Ela aponta que o texto precisa criar regras para a transição de empreendimentos em desconformidade ambiental e que precisam de crédito para se adequar. Esse é um dos pontos cruciais da questão fundiária: muitos pequenos produtores não tem acesso a financiamento, o que os confina à ilegalidade e perpetua a desigualdade.

“O ideal seria buscar um cenário transitório para construir o caminho para a conformidade. Isso viria com condições nas quais o crédito seria concedido com cláusulas corretivas, com a definição de ações a serem implementadas para sanar a desconformidade”, diz.

Na prática, pelo novo texto, só levam bola preta, com proibição de concessão de crédito rural, empreendimentos que não têm o Cadastro Ambiental Rural (CAR), espécie de certificado de posse da terra, que estejam em áreas embargadas pelo Ibama ou ICMBio no Bioma Amazônico ou que tenham sido autuados por trabalho escravo. 

“Na Amazônia, não pode em área embargada, mas no Cerrado e em outros biomas pode? Não faz sentido”, diz Leitão, do Escolhas. 

Especialistas apontam ainda que as proibições são redundantes de já constam em Resolução CMN de 2008. 

O que é sustentável 

A inovação que já era aguardada nos textos diz respeito à inclusão de critérios de sustentabilidade do Sistema de Operações de Crédito Rural (Sicor), com possibilidade de compartilhamento dos dados entre instituições financeiras via open banking.

A ideia é que, de posse dessas informações, os credores possam tomar decisões mais bem informadas e precificar adequadamente o crédito, numa espécie de ‘birô verde’ de crédito ou ‘Serasa da Sustentabilidade’. 

Trata-se de uma demanda antiga de ambientalistas e dos próprios bancos. Mas, da forma como veio empacotada, foi considerada muito abrangente. 

A proposta traz um anexo com uma lista de subprogramas específicos de crédito rural direcionado, sistemas de produção, modalidades e produtos financiados que se encaixam nos critérios de sustentabilidade do BC. 

Entre eles, estão critérios amplos como ‘plantio direto’, feito na maior parte da cultura de soja do país, por exemplo. É considerado sustentável também o crédito concedido para cana-de-açúcar ou capim ou feito em sistemas como integração lavoura-pecuária e agrofloresta.

“Na sustentabilidade, uma questão muito cara é a de adicionalidade: você pode ter uma cultura com plantio direto, mas que está sendo feita em cima de uma área que foi desmatada ou que antes operava com agrofloresta. No saldo, o impacto é negativo”, aponta José Pugas, sócio e head de ESG e agronegócio na JGP Crédito. 

“O ideal seria ter um sistema, considerando as bases de dados e diversos estudos já existentes, que considerasse esses impactos, com base nas melhores informações científicas”, aponta.   

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