O roteiro é conhecido: um assunto ganha destaque no exterior e rapidamente é absorvido pelo meio empresarial brasileiro.
A velocidade em que isso acontece não é, em si, um problema. Num mundo hiperconectado, é previsível que seja assim. Tampouco o tema da vez, o ESG, merece descrédito. A possibilidade de repensar a forma como se faz negócios é um dos desafios mais estimulantes que temos atualmente.
O ponto da discussão é a falta de tradução ao nosso contexto daquilo que acontece lá fora. Já vimos isso em outros temas da agenda de sustentabilidade.
Lembro de quando comecei a trabalhar com as questões de diversidade, em 2005. Pesquisando sobre o assunto em sites de grandes empresas, as raras representações do tema que encontrava eram estereotipadas.
Uma companhia aérea norte-americana, por exemplo, dizia prezar pela inclusão no Brasil e ilustrava seu compromisso com uma foto que incluía um indígena forte apache, uma mulher havaiana e um veterano de guerra – o clichê do multiculturalismo norte-americano.
Passados alguns anos, é como se o ESG desembarcasse no verão brasileiro com os trajes pesados do hemisfério norte.
Temos no país desafios importantes nas três letras que compõem o ESG. E é razoável que se dê atenção especial aos aspectos ambientais. Para o bem e, mais recentemente para o mal, dado o desastre capitaneado pelo atual governo, nossos rios e florestas são objeto de interesse nas principais rodas de conversa do planeta.
Dado isso, e reconhecendo que não se trata de hierarquizar os assuntos, é preciso, no entanto, pensar numa agenda ESG à brasileira.
Refiro-me a um plano de trabalho que considere as grandes questões nacionais e ofereça soluções e alternativas para as peculiaridades de nosso país, cujas necessidades são muito diferentes da de Estados Unidos e Europa, onde o tema ganha tração rapidamente.
Pensar o ESG à brasileira significa, sem prejuízo da urgência da pauta ambiental e da necessidade de avançar em termos de governança, dedicar tempo, investimento e energia ao social.
As (tristes) mazelas brasileiras
É aí que moram imensos gargalos, com características tristemente locais.
No campo social, os desafios brasileiros passam, sobretudo, embora não exclusivamente, pelo enfrentamento de duas mazelas: a desigualdade e o racismo estrutural.
O Brasil é um país de maioria negra. Os autodeclarados pretos e pardos compõem 56% da nossa população, segundo a PNAD mais recente.
Somos também um país marcadamente racista, mas que forjou ao longo do tempo uma imagem muito diferente de si. Só recentemente, com a mobilização de movimentos sociais e a maior articulação nas redes, pudemos encarar as coisas como elas são. Negar o racismo brasileiro hoje é um negacionismo equivalente a deixar de se vacinar.
O meio corporativo reproduz esta dinâmica.
Nas 500 maiores empresas do país, as pessoas negras representam apenas 4.7% das posições de liderança, de acordo com dados do Instituto Ethos. Além disso, mostra o IBGE, uma mulher negra recebe 40% menos que um homem branco exercendo posições equivalentes.
A questão racial não se sobrepõe ou é anulada pela social. Elas se articulam.
Ascender economicamente não significa deixar de experimentar o racismo. Pelo contrário, ele pode até se intensificar, uma vez que o negro de classe média alta costuma ser o único nos espaços a que o dinheiro dá acesso. Sua presença solitária pode despertar questionamentos como os que ouve um cliente meu, vice-presidente de multinacional, toda vez que entra na classe executiva de um avião.
Muitos com muito pouco
Numa agenda ESG à brasileira, tão importante quanto enfrentar o racismo é oferecer alternativas para a desigualdade social. Velha conhecida dos brasileiros, ela cresceu durante a pandemia. Segundo relatório do Credit Suisse, antes da crise sanitária o 1% mais rico concentrava 46,9% da renda nacional. Passado um ano e meio, detém 49,6%.
Não haverá progresso — e muito menos meritocracia, este mito inventado para aplacar a consciência das elites –, enquanto um pequeno grupo seguir com acesso a quase tudo, e a vasta maioria sem oportunidade alguma.
Observar esses temas com atenção deveria ser prioridade para quem está liderando o ESG no país.
As grandes organizações, o mercado financeiro e seus sustainability-linked bonds precisam ter um pé na Faria Lima, porque construir pontes é importante, mas outro nas franjas das cidades e fora do eixo Rio-São Paulo.
Concluo minha estreia como colunista do Reset com um alerta óbvio, mas que, paradoxalmente, precisa ser repetido à exaustão: não existe ESG sem democracia. Práticas sociais, ambientais e de governança dependem de diálogo, transparência, inclusão e solidariedade.
* Ricardo Sales é sócio-fundador da consultoria Mais Diversidade, pesquisador, conselheiro de administração e colunista do Reset. É formado pela USP, onde também fez mestrado sobre diversidade nas organizações. Foi eleito pela Out&Equal um dos brasileiros mais influentes no assunto diversidade nas organizações. Atua para algumas das maiores empresas do país e é também palestrante e professor da Fundação Dom Cabral.