Os pontos cegos da cadeia do ouro (e as possíveis soluções)

Regulamentação da comercialização do metal no Brasil é cheia de lacunas que inviabilizam qualquer tipo de controle, deixando as portas abertas para a ilegalidade

Os pontos cegos da cadeia do ouro (e as possíveis soluções)
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Em tempos em que assegurar que os produtos que chegam aos consumidores foram produzidos sem deixar um rastro de violência social e degradação ambiental, a grave crise humanitária enfrentada pelos Yanomami colocou um holofote sobre a cadeia do ouro no país.

Por ser um bem fungível por natureza, não é simples criar mecanismos confiáveis para rastreio de origem e circulação do metal. Mas a regulamentação da comercialização do metal no Brasil é cheia de lacunas que inviabilizam qualquer tipo de controle, deixando as portas abertas para a ilegalidade. 

Estudos de pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais em parceria com o Ministério Público apontam que, de 2019 a junho de 2022, em torno de 30% do ouro produzido no Brasil pode ser considerado irregular (ilegal ou potencialmente ilegal). 

Já o Instituto Escolhas indica que quase metade do metal produzido e exportado pelo país entre 2015 e 2020 (229 toneladas)  tem origem duvidosa. Mais da metade desse volume veio da Amazônia.

Para chegar a essas conclusões, ambos os estudos demandaram o cruzamento e a análise de uma enormidade de dados — essencialmente registros de permissão de lavra da Agência Nacional de Mineração, dados contidos nas guias de recolhimento da Contribuição Financeira por Exploração Mineral (Cfem) e imagens de satélite.

Em muitos casos, a região que consta como origem declarada do minério não apresenta qualquer sinal de atividade minerária.

O caminho do ouro

Uma vez extraído da terra, a legislação brasileira permite que o ouro seja comercializado de duas formas: como mercadoria, para a fabricação de joias ou componentes eletrônicos, por exemplo, ou como ativo financeiro. 

No entanto, como o tratamento tributário do ouro como ativo financeiro (incidência de IOF de 1%) é muito mais favorável que o do ouro mercadoria (18% ou mais de ICMS e 9,25% de PIS-Cofins), há um forte incentivo à destinação do ouro ao mercado financeiro no Brasil. 

Posteriormente, é possível transformá-lo em ouro mercadoria. Essa divisão já é atípica. Em outros países do mundo é mais comum que o ouro seja tratado apenas como mercadoria.

A atividade ilegal se concentra nos garimpos, onde estão volumes pequenos ou irregulares que não justificam investimentos em pesquisa, em oposição ao metal que é extraído de jazidas com grandes quantidades de minério. 

Para os garimpos, existe a obrigatoriedade de que o metal seja vendido exclusivamente a distribuidoras de títulos e valores mobiliários, as DTVMs, instituições financeiras reguladas pelo Banco Central. Seria uma forma de tentar dar mais controle à atividade. 

A boa-fé como garantia

A questão é que, desde 2013, as DTVMs não precisam se preocupar com a origem do ouro que compram e nem podem ser responsabilizadas pela eventual origem ilegal.

A Lei nº 12.844, editada naquele ano, definiu que deve ser presumida a boa-fé do comprador do ouro e que a responsabilidade pela veracidade das informações recai sobre o vendedor. Este, por sua vez, presta informações autodeclaradas.

A partir daí, todas as transações subsequentes envolvendo o metal partem do pressuposto de que se trata de produto legal. É assim que o ouro extraído ilegalmente de terras indígenas e unidades de conservação é lavado e ingressa no mercado, pronto para ser vendido para grandes empresas. 

Esse comércio baseado na presunção de boa-fé passou a vigorar graças a um jabuti incluído durante a tramitação no Congresso de uma Medida Provisória editada pelo governo Dilma para beneficiar agricultores familiares em dificuldades. 

Antes disso, os compradores eram obrigados a verificar a procedência do minério, sob risco de serem responsabilizados em caso de comercialização de ouro extraído ilegalmente.

Tramita no Supremo Tribunal Federal uma ação de autoria do PV para questionar trecho da presunção da boa-fé pelas DTVMs na compra do ouro. 

Na semana passada, o ministro Gilmar Mendes, relator do processo, pediu informações à Agência Nacional de Mineração e ao Banco Central.

Segundo a jornalista Andréia Sadi noticiou ontem, uma solução mais rápida para a questão pode vir por meio de uma Medida Provisória que o governo federal estuda editar.

Controles de papel

A mesma lei de 2013 previa a informatização de todos os procedimentos de compra e venda de ouro pela Agência Nacional de Mineração, algo que nunca aconteceu. 

As informações continuam dispersas nos arquivos das DTVMs que compram e vendem ouro, dificultando o seu cruzamento com outros dados.

Toda a regularidade do ouro no Brasil está baseada exclusivamente na declaração feita pelo vendedor na nota fiscal da primeira venda. Não existe nenhum outro tipo de certificação da cadeia, como acontece com a atividade madeireira, por exemplo.

Apesar desse papel fundamental da nota fiscal para o rastreio do ouro, uma instrução normativa da Receita Federal de 2001 permite que a compra e venda do ouro seja registrada em notas fiscais físicas, ou seja, de papel, o que dificulta e muito a fiscalização.

O secretário especial da Receita Federal, Robinson Sakiyama Barreirinhas, afirmou ontem que o órgão decidiu exigir nota fiscal eletrônica para as transações com ouro. Mas a informatização do sistema, disse, deve levar meses e a expectativa é que saia até o fim deste ano.

Sob as barbas do Banco Central

Instituições financeiras autorizadas pelo Banco Central são um elo crucial para legalizar ouro do garimpo ilegal.

Ao obrigar que o ouro de garimpo seja comprado por DTVMs, a lei de 2013 deu origem ao surgimento de distribuidoras de valores aparentemente dedicadas a esquentar o metal extraído ilegalmente.

O levantamento do Instituto Escolhas mostra que quatro DTVMs foram responsáveis por comprar um terço de todo o ouro com indícios de ilegalidade entre 2015 e 2020, ou 79 toneladas. “Isso significa que 87% de suas operações são duvidosas”, escrevem os autores do estudo.

As distribuidoras em questão, F.D’Gold, Ourominas, Parmetal e Carol, todas com sede em São Paulo, são também as maiores compradoras do ouro extraído da Amazônia. 

As três primeiras são alvo de ações judiciais movidas pelo Ministério Público Federal, que pede a suspensão de suas atividades por comercialização de ouro ilegal no Pará.

A investigação do Escolhas mostra que os sócios de cada uma das quatro distribuidoras possuem laços em toda a cadeia de exploração do ouro, desde a extração, passando pelo refino, por empresas de transporte aéreo, transporte de valores etc. Muitos deles são, inclusive, titulares de garimpos.

Para o diretor do Escolhas, Sérgio Leitão, o Banco Central deveria apertar a regulação e fiscalização das distribuidoras de ouro. 

“Enquanto o BC é extremamente exigente na fiscalização dos bancos, as DTVMs são os primos pobres do sistema financeiro e não recebem a mesma atenção”, diz. “Se os volumes transacionados por elas são pouco representativos dentro do sistema financeiro, é algo crítico para assegurar que as exportações brasileiras de ouro estão dissociadas de crimes ambientais e sociais.”

Leitão diz ter se reunido com o presidente do BC, Roberto Campos, em julho do ano passado para tratar dessa questão e apresentar sugestões. “As participações cruzadas na cadeia do ouro deveriam ser proibidas e as DTVMs, investigadas”, diz ele. 

Outra sugestão foi para que um grupo de trabalho do BC identificasse as lacunas regulatórias que limitam a capacidade de ação do governo para propor mudanças.  

Procurado, o BC informou que “não compete a bancos centrais atuarem na fiscalização de atividades relacionadas ao garimpo e à extração de ouro”.

O BC diz apoiar o aprimoramento do marco legal para a fiscalização do comércio do ouro, como a revogação da presunção de legalidade na aquisição do metal pelas DTVMs e a exigência de nota fiscal eletrônica, além de mecanismos privados para rastreio da cadeia.

Rastreio completo

Resolver os pontos cegos da regulação e fiscalização da comercialização do ouro é só o começo.

O Ministério Público e os pesquisadores da UFMG recomendam que a metodologia desenvolvida para o estudo sobre a legalidade do ouro no Brasil sirva de base para um sistema de garantia da origem do produto brasileiro, livre de degradação ambiental e de conflitos com comunidades indígenas. 

Recomendações para a criação de um sistema de rastreio para o ouro brasileiro são feitas numa pesquisa idealizada pelo Instituto Escolhas e realizada pelo Instituto Locomotiva. 

A sugestão é de criação de um banco de dados descentralizado, com uso de tecnologia blockchain, para registrar toda as etapas da cadeia do ouro, desde a concessão do direito de lavra ou de garimpo e das licenças ambientais até chegar à indústria. 

Um dos aspectos mais sensíveis para se chegar ao rastreio total está em ‘marcar’ o próprio minério, para que ele se torne inconfundível.

A iniciativa mais avançada para contornar esse aspecto vem sendo desenvolvida pela empresa australiana Security Matters. 

Por meio de uma tecnologia batizada de TrueGold, ela consegue fazer uma marca única na molécula do metal, que pode ser identificada tanto no estado sólido quanto líquido, inclusive depois de reciclado.