O decreto que cria o mercado de carbono brasileiro, explicado

Texto traz mais dúvidas que certezas, mas é considerando avanço na agenda de precificação de gases de efeito estufa

O decreto que cria o mercado de carbono brasileiro, explicado
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Um decreto publicado na noite de quinta-feira trouxe as bases para o que pode vir a ser um mercado de carbono nacional. 

Publicado 13 anos após a Política Nacional sobre Mudanças do Clima, o texto tem o mérito de dar a partida oficial nas discussões sobre a precificação de gases de efeito estufa no Brasil.

Mas ainda traz mais dúvidas que certezas e deixa muitos pontos em aberto sobre como funcionaria efetivamente um sistema de comércio de emissões nacional.

“Talvez essas inconsistências possam ser resolvidas depois em regulamento, mas isso torna difícil entender o sistema que está sendo implantado e pode causar mais insegurança jurídica e incertezas no mercado”, afirma Caroline Prolo, sócia do Stocche Forbes Advogados. 

Outra questão é que o decreto corre o risco de ter vida curta. 

Um projeto de lei encabeçado pelo deputado Marcelo Ramos (PSD) que tramita há mais de um ano no Congresso e foi que construído com forte contribuição do Centro Empresarial Brasileiro pelo Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) teve um avanço importante na semana passada. 

A deputada Carla Zambelli, que lidera a Comissão de Meio Ambiente da Câmara, apresentou seu relatório – e agora, ao menos em teoria, o projeto de lei pode andar a qualquer momento no Congresso. 

“O texto do PL parece estar muito mais maduro e, se ele passar, o decreto precisará de ajustes significativos”, diz Luiz Bezerra, head da área ambiental do Tauil & Chequer Advogados.  

O que diz o decreto

Na prática, o decreto estabelece nove setores como elegíveis para planos de redução de emissões de gases de efeito estufa, em linha com o que já previa a Política Nacional sobre Mudança do Clima:

  • geração e distribuição de energia elétrica
  • transporte público urbano e sistemas modais de transporte interestadual de cargas e passageiros; 
  • indústria de transformação e bens de consumo duráveis; 
  • indústrias química fina e de base; 
  • indústria de papel e celulose; 
  • mineração; 
  • indústria de construção civil; 
  • serviços de saúde e agropecuária

O que está claro é que as metas de redução não serão impostas de largada, mas sim discutidas com os setores regulados, na forma de acordos: cada setor terá 180 dias, prorrogáveis por mais 180, para apresentar suas propostas.  A palavra final caberá ao Comitê Interministerial sobre Mudanças Climáticas. 

O decreto fala ainda sobre um mercado em que seriam transacionados créditos de carbono: o Mercado Brasileiro de Redução de Emissões, uma “ferramenta de implementação dos compromissos de redução de emissões dos setores”, via “créditos certificados de redução de emissões”. 

E cria o Sistema Nacional de Redução de Emissões de Gases de Efeito Estufa (Sinare), uma central de registro único que serviria tanto para abrigar os inventários de emissões quanto para o comércio e transferência de créditos de carbono. 

Ainda não está claro como funcionarão esses dispositivos, como eles se comunicarão para formar efetivamente um mercado e tampouco as sanções para quem não cumprir o que determina o decreto. 


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Acordos setoriais

Uma das principais dúvidas é como funcionariam os acordos setoriais para definir as metas de redução de emissões de cada um dos setores – o que não encontra respaldo em nenhuma experiência internacional. 

No mercado europeu, o mais consolidado do mundo, as metas são definidas pelo órgão regulador.

“E como isso vai se traduzir em metas para as empresas individualmente?”, questiona Ronaldo Seroa da Motta, professor da UERJ e um dos maiores especialistas em precificação de carbono no Brasil. “Dificilmente vai se conseguir traduzir metas setoriais em individuais de uma forma rápida e consensual, sem muito ruído e desgaste político”.

A ideia de ter a participação ativa dos setores bebe da mesma fonte da Política Nacional de Resíduos Sólidos, usada para a logística reversa — e que demorou mais de 10 anos para efetivamente ganhar alguma tração. E ainda assim os índices de destinação adequada de resíduos são baixos.

No caso do carbono, com os acordos, o governo abre a possibilidade de o setor privado se adiantar, se organizar e apresentar as suas metas, planos e cronogramas. A questão é que, por ora, não há nada mandatório.

“Se os setores indicados não cumprirem os prazos previstos, quando é que o governo assume a responsabilidade e impõe as metas?”, questiona Ana Luci Grizzi, advogada especialista em direito ambiental.

Mercado de quê? 

Outra grande dúvida é como funcionaria o sistema de comércio de emissões. 

O texto faz pouca distinção entre dois conceitos bastante caros aos mercados de carbono

Há os créditos que são gerados entre os setores regulados, normalmente num esquema de “cap and trade”: quem emitiu mais que o teto permitido pode comprar créditos de quem emitiu menos.

A lógica nesse tipo de desenho é que em algum momento haja escassez de créditos e os preços dos créditos sejam altos o suficiente para estimular os participantes do mercado a reduzir suas emissões. 

Em paralelo, há os créditos para offsets ou compensações, em que os créditos são comprados fora dos setores regulados, utilizados principalmente no mercado voluntário, em que as empresas definem suas próprias metas.

“A redação do decreto parece permitir que os agentes regulados possam cumprir 100% de suas metas comprando offsets”, afirma Caroline Prolo, do Stocche Forbes. “No fim do dia, o efeito prático disso parece ser mais no sentido de incrementar a demanda de empresas que compensam suas emissões, um movimento que já estava acontecendo no mercado voluntário. É de certa forma a regulação do mercado voluntário”. 

Jabuticabas e governança

Uma crítica quase unânime ao texto diz respeito a conceitos que não são utilizados em outros mercados, como “créditos de metano”. Em todos os mercados, as emissões de metano são medidas e transacionadas em unidades de carbono equivalente.

No texto, não fica claro para que esses créditos seriam usados, mas eles aparecem entre as tipificações que poderiam ser registradas no Sinare. 

Há ainda o conceito de “unidade de estoque de carbono”. Ao que tudo indica, a ideia é apenas colocar a medida de estoque de carbono no sistema de registro único de emissões e não transformá-la em créditos – mas a mistura de conceitos pode causar confusão.

“O objetivo de um sistema único de registro é aumentar a integridade climática. Permitir que algo seja inserido no sistema sem uma validação não é um bom começo”, diz Seroa da Motta. 

Outro ponto é em relação à governança do sistema. Pelo decreto, a administração do Sinare ficaria a cargo do Ministério do Meio Ambiente. Hoje, os registros de emissões nacionais são de responsabilidade do Ministério de Ciência e Tecnologia, que concentra a expertise no tema. 

“O decreto bota o Sinare na mão do MMA e basicamente esse sistema é ou pode vir a ser uma mega-estrutura, incluindo até a arquitetura doméstica relativo ao Artigo 6 do Acordo de Paris. O MMA tem competências e capacidades para lidar com algo dessa magnitude? Atualmente, ele não dá conta nem da sua obrigação precípua, que é controle do desmatamento”, diz Natalie Unterstell, especialista em políticas climáticas e presidente do Instituto Talanoa.

Bola em campo 

Apesar de todos os problemas com o decreto, a sensação de quem atua há tempos na agenda de carbono é que finalmente a pauta andou. 

“Do ponto de vista regulatório, é um grande avanço porque faz mais de 10 anos que estávamos esperando por isso”, afirma Plínio Ribeiro, CEO da Biofílica Ambipar, pioneira no desenvolvimento de projetos de crédito de carbono florestal. 

“Não compactuo com o texto, mas, mesmo com todos os problemas técnicos, o lado positivo é que essa discussão se tornou agora oficial. Temos certeza que do lado do governo há um desejo de criar um instrumento de precificação via mercado e o decreto é um ponto de partida”, afirma o professor Seroa da Motta.