Uma nova metodologia made in Brazil quer ampliar o escopo dos créditos de carbono e associá-lo ao pagamento por outros serviços ambientais, como os de manutenção da biodiversidade — abrindo a possibilidade para o uso do instrumento para conservação em áreas nas quais hoje ele não é utilizado, como a Mata Atlântica.
Desenvolvida pela consultoria brasileira Eccon e pelas Reservas Votorantim, que será a primeira a lançar um projeto nos seus moldes, a proposta acaba de ser colocada em consulta pública por um período de dois meses.
O período se estende até depois da COP27, que começa em novembro, para que seja possível apresentar a ideia e coletar impressões durante a Conferência do Clima.
“É uma metodologia feita pensando na realidade do Brasil, baseada na legislação brasileira e em seus biomas e particularidades fundiárias”, afirma Yuri Rugai, fundador da Eccon.
Os créditos de carbono como alternativa para remunerar a floresta em pé vêm crescendo no país.
Mas os projetos de desmatamento evitado (o chamado REDD+), hoje o principal instrumento para este fim, são praticamente uma exclusividade da Amazônia, onde há muita pressão pela derrubada da floresta e as propriedades com frequência cobrem grandes áreas, de dezenas de milhares de hectares.
A conservação de áreas menores e em outros biomas, especialmente na Mata Atlântica, ainda não tem um instrumento de mercado viável para incentivar a conservação.
Uma das principais questões é o conceito de “adicionalidade”. (Entenda aqui como funcionam os créditos de carbono.)
Em linhas gerais, para gerar créditos de carbono, os projetos florestais têm de representar um incentivo para que não haja emissões de gases de efeito estufa. Ou seja, é preciso provar que, na ausência do crédito, possivelmente a floresta seria derrubada para dar lugar a uma outra atividade econômica.
Como a Lei da Mata Atlântica é bastante rigorosa em relação ao licenciamento para a abertura de novas áreas, é muito difícil comprovar a adicionalidade do desmatamento evitado. Outra questão é que as propriedades no bioma normalmente são de menor porte, o que faz com que não valha a pena incorrer nos custos para se gerar o crédito.
Dois (ou mais) em um
A solução foi criar um título que parte da métrica conhecida pelo mercado, as toneladas de carbono que deixam de ser emitidas ao se evitar o desmatamento, mas associada ao pagamento por serviços ambientais (PSA) prestados pelas florestas, como a manutenção da biodiversidade e do ciclo hídrico, ou a purificação do ar.
“Estamos colocando uma possibilidade que une dois grandes temas mundiais dos mais importantes em termos de desafios do planeta, que são o carbono e a conservação da biodiversidade”, afirma David Canassa, diretor das Reservas Votorantim, que é dona do Legado das Águas, maior área de vegetação preservada de Mata Atlântica.
Hoje, os créditos de carbono REDD+ tradicionais podem vir com selos adicionais, que atestam que os projetos têm preocupação social e com biodiversidade.
Mas a ideia na nova metodologia, batizada de PSA Carbonflor, é que esses fatores tenham a mesma importância. Os proponentes precisam listar os serviços prestados de forma detalhada já de largada — a expectativa é que haja compradores interessados em remunerá-los também por essa fatia.
“Estamos preocupados já na partida em garantir esses dois temas, não mais como co-benefício, mas com a mesma importância”, afirma Canassa. “Queremos construir um crédito que já nasça muito robusto do ponto de vista de serviços prestados.”
A biodiversidade é relevante para manter as florestas em pé: conforme vão se perdendo espécies, a fauna e a flora começam a perder a capacidade de se regenerar. O tema vem crescendo dentro da agenda ESG, mas ainda não há consenso de como medir e remunerar esses serviços.
A aprovação de uma lei no começo de 2021 que reconheceu o pagamento por serviços ambientais abriu espaço para que o Brasil liderasse nesse mercado, afirma Rugai.
“A legislação do PSA reconheceu que todos esses esforços relacionados à manutenção da floresta, e inclusive da parte obrigatória, pode ser creditada em um título que vai virar um ativo negociável”, diz ele.
Adicional?
Como trata-se de um mercado voluntário, o sucesso de uma nova metodologia depende da confiança e da adesão dos participantes.
Nesse caso, para entrar nos planos de net zero das empresas, é preciso garantir que o carbono gerado para compensação de emissões seja considerado ‘íntegro’, ou seja, que realmente evitou uma emissão.
Nesse sentido, um dos maiores desafios de Votorantim e Eccon vai ser romper com o paradigma de adicionalidade como ele é pensado hoje no mercado.
A ideia no REDD — que nasceu dentro do ambiente regulado da ONU antes de ser apropriado pelo mercado voluntário — é premiar a floresta que deixou de cair (a emissão de carbono evitada) e não a floresta que está em pé (o carbono estocado).
É um tema controverso, mas parte do mercado questiona o quão “adicional” é gerar créditos de carbono em áreas protegidas pela lei, especialmente naquelas distantes dos epicentros do desmatamento no país.
A nova proposta parte de duas premissas pragmáticas. Primeiro a de que, apesar das proteções legais, a vegetação nativa vem diminuindo em todos os biomas brasileiros. Segundo, a de que custa manter a floresta em pé – e os proprietários deveriam ser remunerados por esse serviço.
“Se as florestas existem hoje na Mata Atlântica é porque alguém está gastando, investindo dinheiro para manter essas florestas. Num território parado no Brasil, vai acontecer invasão, vai acontecer desmatamento”, afirma Canassa. “Pode haver responsabilizações, mas isso não significa nada: a floresta vai ser prejudicada e o carbono que estava estocado ali vai sumir.”
Rugai, da Eccon, afirma que o REDD+ funciona para boa parte dos casos, mas gerou muitas exclusões.
“Você tem um desamparo completo nas áreas conservadas do Brasil, principalmente na Mata Atlântica, que tem o serviço ambiental prestado, mas um IDH baixo, normalmente”, afirma.
A metodologia criada abre espaço também para remuneração por fragmentos de floresta que precisam ser conservados por lei hoje, como reservas legais e áreas de proteção permanente de propriedades rurais.
Outro desafio vai ser desenvolver um mercado para pagamento de serviços ambientais – e convencer as empresas compradoras de que vale a pena pagar por eles. Até hoje, no Brasil, o setor público tem sido o principal comprador de PSAs, remunerando proprietários por exemplo pelo serviço de manutenção de mata ciliar em nascentes.
Do voluntário ao regulado
Num primeiro momento, a ideia da Eccon — que atua como desenvolvedora de projetos, incluindo de REDD+ — é ser a central de custódia, validação e verificação desses créditos, por meio de uma plataforma batizada de Eccon Data.
Mas a “incubação” é temporária, até que a metodologia ganhe tração, e a ideia não é competir com as centrais internacionais de custódia, como a Verra, diz Rugai. “A própria Verra começou assim, desenvolvendo os projetos até as metodologias começaram a ganhar vida própria. Somos e continuaremos sendo desenvolvedores.”
Apesar de estar começando pelo mercado voluntário, ele vê espaço para que o título entre também num eventual mercado regulado brasileiro. “Entendemos que o título atende ao que está previsto no decreto federal lançado em maio“, diz.
Na consulta pública, Eccon e Reservas Votorantim querem colher ideias e percepções e validar o modelo. Uma das principais dúvidas diz respeito à valoração dos serviços de biodiversidade.
“Se do ponto de vista de carbono foi criada toda uma lógica de quantificação de biomassa que hoje é totalmente reconhecida e que demorou bastante tempo para ser criada, do ponto de vista de biodiversidade tem muita coisa ainda que precisa ser aprimorada e a gente está aberto a ouvir”, afirma Canassa, da Votorantim.
Um webinar marcado para a próxima terça-feira (27) vai dar o pontapé na apresentação da proposta e contará com representantes da Natura, da Embrapa, da Convenção de Biodiversidade da ONU e da Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura.