Desde o mês passado, todos os dias um monomotor turboélice Cessna Grand Caravan decola do aeroporto de Manaus para cruzar o céu até Porto Velho, em Rondônia, carregado de geladeiras, televisores e smartphones.
Essa é apenas a mais recente peça de um intrincado quebra-cabeça logístico armado pela rede varejista manauara Bemol para chegar aos quatro cantos da chamada Amazônia Ocidental, que compreende Amazonas, Rondônia, Roraima e Acre.
Fundada em 1942 por três irmãos da família Benchimol, a Bemol ocupa há tempos o posto de maior rede de varejo do Norte do país, com faturamento de R$ 2,9 bilhões em 2020, originado principalmente nas 26 lojas físicas concentradas nas capitais Manaus, Porto Velho, Boa Vista e Rio Branco.
Mas, no posto de CEO desde 2018, Denis Benchimol Minev, neto de um dos fundadores, vem conduzindo a estratégia de interiorizar as atividades da rede e construir uma fortaleza do e-commerce na região.
Uma Amazon verdadeiramente amazônica.
“Operamos bem nas capitais, mas certamente o lado mais desafiador do negócio e onde vemos mais oportunidade de crescimento são os interiores da Amazônia”, diz Minev.
O plano é abrir uma loja em cada um dos 150 municípios da Amazônia Ocidental até 2023 e, paralelamente, avançar com o e-commerce, que cresce com mais velocidade.
Logística, conectividade e crédito
Mas numa região em que o acesso à internet é um luxo, os deslocamentos de pessoas e cargas são um desafio e que até mesmo o dinheiro em espécie é um bem escasso, como chegar lá? A chave é a inclusão.
E o modelo da Bemol se apoia num tripé: logística, conectividade e crédito.
Em cada uma dessas frentes, a empresa tem arregaçado as mangas para fazer acontecer.
Na logística, depender dos Correios é quase sempre caro e demorado. “No e-commerce não é mais tolerável em quase lugar nenhum do mundo, e na Amazônia inclusive, esperar 30 dias para receber um produto. Você não consegue penetrar os mercados quando esse é seu prazo de entrega”, diz Minev.
O jeito foi criar uma solução para cada município para derrubar prazos e cortar custos.
Ao redor de Manaus e no Estado de Roraima todo o transporte é rodoviário. Mas em outros municípios do Amazonas, o acesso é exclusivamente fluvial. Em alguns até existem balsas frequentes, mas, em outros, um barco atraca em um barranco e alguém coloca a carga nas costas para fazer a distribuição.
“Para cada um desses municípios, inventamos uma solução, como alugar o convés de uma balsa de forma permanente para colocar um contêiner que vai cheio e volta vazio”, diz Minev.
Assim, a empresa tem a certeza de que pode entregar na data prometida, sem grandes sustos.
“E temos que ser bem flexíveis, porque muitos dos barcos não são registrados. Você vai na beira do rio, descobre qual barco vai para onde e aluga o convés. Mas não tem nota fiscal, atributo básico de uma operação empresarial.”
De monomotor
Também foi a insatisfação com o prazo de entrega e o abastecimento das lojas em Rondônia, que chegava a levar dez dias, que colocou o avião monomotor na jogada.
A controversa BR-319 se cobre de lama e fica intransitável durante boa parte do ano, ao mesmo tempo em que o Rio Madeira não tem esse nome à toa: são muitos os troncos que descem com as águas furando cascos e destruindo hélices das embarcações.
A opção do transporte aéreo já era analisada há anos, mas só agora a escala atingida pelo negócio na região justificou o custo de alugar o monomotor e testar a opção.
O número de aviões — e o porte deles — tende a crescer conforme aumentam os volumes vendidos pela empresa.
Wi-fi da floresta
Se a ideia de uma frota aérea de carga faz parte dos planos para o futuro, uma equipe própria para levar internet aos confins da floresta já é realidade. Até a segunda onda da covid parar tudo, sete pessoas vinham viajando de município em município para instalar redes wi-fi, alugando postes e fazendo a instalação.
O acesso à internet é antes de tudo essencial para o funcionamento das lojas. As novas unidades que começam a ser abertas no interior — até agora foram quatro — seguem um padrão de 300 metros quadrados, enquanto as de Manaus têm 2500 m2. Nelas, uma fração dos produtos fica em exposição e a ideia é vender todo o catálogo que se apresenta online.
Mas, estrategicamente, a Bemol também oferece wi-fi de graça dentro das lojas e nos seus arredores. Sem dúvida, a conexão serve para atrair um fluxo maior de pessoas. Mas não só.
“A conectividade no interior é central para o negócio. Em todas as cidades em que operamos, mesmo que não tenhamos loja, colocamos rede wi-fi”, diz Minev. Até agora já existem 60 redes wi-fi gratuitas que operam na área central das cidades, na rua principal do comércio ou em praças.
A inclusão digital faz bem para as pessoas — e melhor ainda para os negócios. “Para nós faz todo sentido. A rede é de graça em troca de dados. Rapidinho criamos um cadastro enorme na cidade, com CPF, email e telefone.”
‘Crédito aventura’
Essa é a ponte para a última parte do tripé: o crédito.
“Desenvolvemos um bom modelo de precificação de crédito e rapidamente avisamos a pessoa por SMS que ela tem um crédito pré-aprovado no cartão Bemol.”
No crediário da Bemol o cliente compra em até cinco vezes sem juros, mas pode optar por até dez parcelas com juros — que chegam a 7% ao mês para os maiores riscos, mas que ficam numa média de 2,5%. A maioria, diz Minev, escolhe a primeira opção.
A operação financeira, por si só, é uma aventura.
A maior parte das pessoas cadastradas nunca teve conta em banco e sequer tem registro no Serasa. “Hoje temos 2,5 milhões de pessoas cadastradas. Se você pensar que nos quatro Estados em que operamos a população é de 8 milhões de pessoas, já conhecemos bastante gente e temos dados suficientes para rodar nossos sistemas de machine learning e redes neurais para tentar prever quem tem chance de se tornar um bom cliente”, diz Minev.
A inadimplência inicial é de espantosos 40%. Mas o limite de crédito inicial de cerca de R$ 150 reduz o risco de perda.
“A lógica é de ‘customer acquisition cost’. Os 60% que pagam a conta acabam comprando muito mais e compensando isso. Tem bastante risco, mas é um risco com o qual estamos acostumados a lidar.” Entre os clientes recorrentes, a inadimplência cai para 4% a 5%.
Cerca de 75% de tudo que a Bemol vende é via crediário.
Hoje a operação é feita como correspondente bancário, mas Minev dá a entender que esse pode ser o embrião de um Banco Bemol no futuro. “Hoje o crédito que damos é sem garantia. Mas eu adoraria financiar a compra da casa própria, numa lógica de fidelização de longo prazo que tem tudo a ver com nosso negócio.”
Tudo isso tem um custo, mas Minev diz que cria um diferencial e uma barreira de entrada em relação a outros operadores de comércio eletrônico, transformando a Bemol em líder em cada localidade.
E, conforme ganha escala, esses custos se diluem. “Hoje conseguimos vender R$ 1 milhão por mês em cidades em que antes não vendíamos nem R$ 50 mil.”
Dos quase R$ 3 bilhões faturados no ano passado, 20% já vieram do e-commerce. Dois anos antes, a venda online representava apenas 2%.
No radar da Faria Lima
Os números já chamaram a atenção da Faria Lima e Minev confirma que recebeu algumas visitas de banqueiros de investimento interessados em promover o IPO da Bemol.
Ele, que começou a carreira no Goldman Sachs em 1999 depois de se formar em Economia por Stanford, diz que, por ora, uma oferta de ações está fora dos planos. Assim como a tomada de dívida.
“Na estratégia definida pelo conselho até 2023 temos muitas oportunidades de investimento muito rentáveis e vamos num ritmo de geração de caixa. A empresa não é endividada e não pretende se tornar.”
O que deve demandar capital a partir daí — e abrir a porta para a bolsa — são outras frentes de negócios que Minev considera complementares. Uma delas seria a criação do crédito imobiliário. Outra é o segmento de geração solar compartilhada, em que o grupo constrói as fazendas solares e comercializa a energia de forma pulverizada.
No ano passado o grupo estreou na área com uma planta de energia solar próxima de Manaus, com capacidade de 1 megawatt. Outra fazenda solar de 3 megawatts já está em construção e uma terceira com o dobro dessa capacidade deve ser concluída ainda em 2021.
A venda da energia gerada, na forma de uma assinatura mensal, começou pelos próprios colaboradores, mas a ideia é oferecê-la aos clientes dentro das lojas, como parte do negócio de varejo, dentro da lógica de aumentar a fidelidade.
“Queremos ser líderes em geração distribuída nos quatro Estados e vemos espaço para chegar facilmente a 100 megawatts”, diz Minev. “Hoje um IPO não faz sentido, mas se o plano de negócios pegar tração, vai demandar um volume de investimento maior do que nosso fôlego.”
Antes de chegar à bolsa, no entanto, Denis Minev diz que quer arrumar a casa. “Ainda não estamos onde gostaríamos em termos de sustentabilidade”, diz.
No ano passado, o grupo fez uma consultoria com o Sistema B de olho em tirar o selo. Mas, para chegar à certificação, o esforço não será pequeno e terá que se dar em várias frentes. O processo de estimular a diversidade, por exemplo, começou há pouco tempo e ainda demora a dar resultado.
“Temos problemas com nossa logística reversa. Nós vendemos muitas geladeiras e é comum o cliente perguntar se podemos levar o aparelho antigo. Mas hoje não temos o que fazer com ele e gostaríamos de inventar uma solução.”
Limitar a venda de produtos de baixa performance elétrica é algo que também está nos planos para reduzir a pegada ambiental, bem como encaminhar os resíduos das lojas para reciclagem.
“Manaus não tem uma comunidade de reciclagem densa. Estamos avaliando a possibilidade de financiar as cooperativas de reciclagem para ver se conseguem ganhar porte para atender a cidade toda.”
A empresa fixou como meta se tornar uma Empresa B entre 2022 e 2023. “Temos muitos planos e ideias de como podemos ser mais responsáveis, mas ainda não estão bem executados. Por isso precisamos de tempo para maturar e bater cabeça.”
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