Nas favelas brasileiras, ainda há muita gente que não possui conta em banco ou não sabe bem como funciona um seguro.
Também há muita economia real, que pulsa nos pequenos negócios das regiões periféricas. Mas são empreendedores acabam ficando desprotegidos de qualquer vento que possa balançar seu negócio.
Na tentativa de gerar impacto social e destravar um mercado onde a oferta de serviços financeiros é virtualmente inexistente, a seguradora Mapfre acaba de lançar um programa de microsseguros voltado para as favelas, em parceria com o coletivo G10 Favelas.
Um piloto começou a ser desenvolvido há dois anos em Parelheiros, um dos distritos mais pobres de São Paulo, no extremo sul da cidade.
Agora a iniciativa está sendo ampliada para Paraisópolis, segunda maior favela da capital paulista, com cerca de 100 mil habitantes.
A Mapfre vai oferecer três produtos: Minha Vida, um seguro de vida que oferece assistência funerária e descontos em consultas médicas, exames e medicamentos, além de acesso à telemedicina; Meu Trampo, seguro empresarial com foco em proteger pequenos negócios; e Meu Bem Protegido, seguro de garantia de reparo ou indenização de eletrodomésticos ou aparelhos de salão de beleza como secador e prancha, essenciais para a prestação desse tipo de serviço.
O programa foi formatado levando em conta as peculiaridades dos moradores das favelas, a começar pela forma de comercialização.
Os produtos são ofertados a valores módicos, que variam de R$ 27,90 a R$ 197,90 por ano.
Para contratar um seguro, é necessário apenas utilizar um cartão de crédito e fazer um cadastro em totens espalhados pelo pavilhão do G10 Favelas em Paraisópolis.
Donos de negócios informais que não têm um CNPJ poderão adquirir o seguro empresarial, por exemplo. Não há restrições para quem está com o “nome sujo” em cadastros de devedores, como SPC ou Serasa.
A intenção da Mapfre é avaliar o desenvolvimento do projeto ao longo do próximo semestre e depois expandi-lo nos próximos anos. A ideia é levar o programa para ao menos 11 comunidades até 2026.
A companhia prefere não estimar quantas pessoas poderia atingir neste momento.
Para Gilson Rodrigues, presidente do G10 Favelas, os microsseguros teriam espaço nas 400 favelas onde o coletivo está presente. “O potencial de escala é gigantesco, o produto é bom, barato, inclusivo e acessível”, diz.
O foco do projeto não está necessariamente no lucro, segundo a diretora de sustentabilidade da Mapfre, Fátima Lima. “Nesse primeiro momento, a gente não busca lucrar com um projeto como esse. O propósito é dar acessibilidade e proteção à comunidade”, diz ela.
“A gente quer que o seguro seja acessível a todos os estratos sociais porque representa proteção, e todo mundo precisa de uma maneira ou de outra de proteção”, resume o CEO da Mapfre no Brasil, Felipe Nascimento.
Pé na favela
A ideia de desenvolver um programa específico para favelas veio a partir de uma meta da Mapfre, que tem sede na Espanha, em nível global: ampliar o acesso aos seguros.
Há cinco anos, a companhia começou a identificar possíveis formas de atuação.
Bebendo na fonte do famoso conceito de microcrédito do economista e Nobel da Paz Muhammad Yunus, e mapeando possíveis formas de atuação, a companhia encontrou nas favelas um potencial mercado de entrada.
As regiões periféricas do país ainda têm uma demanda reprimida relevante de serviços bancários e de seguros – ainda que a desbancarização tenha diminuído por força dos auxílios emergenciais criados na pandemia e do boom de bancos digitais e instituições de pagamento na última década.
Para Gilson Rodrigues, iniciativas como a da Mapfre reforçam a ideia de que é necessário quebrar os “muros invisíveis” que separam as favelas da sociedade.
“É quase impossível negar que esse mercado vive, consome. Apesar de estarmos em bolsões de pobreza, a gente quer ser tratado como cliente”, resume ele.
No piloto de Parelheiros, a Mapfre dedicou uma equipe de 30 pessoas para desenhar o projeto e ouvir os moradores.
O primeiro desafio foi explicar – e desmistificar – o mercado de seguros.
“As pessoas não conheciam de fato o que é um seguro, o que ele pode trazer de benefício no dia a dia. A referência que elas tinham é de algo muito caro, que não faria sentido para elas”, afirma Fátima Lima, diretora de sustentabilidade da Mapfre.
Dentro da companhia, houve a necessidade de flexibilizar regras e criar produtos mais adequados à realidade dos moradores das periferias, diz Ivo Kanashiro, superintendente de sustentabilidade da Mapfre. “Na primeira versão, o projeto era cheio de travas. Fomos desconstruindo tudo”, recorda ele.
Kanashiro cita um exemplo: o seguro de proteção de bens usados exigia a apresentação das notas fiscais dos produtos – o que nem sempre era viável.
“Comprei um liquidificador da minha vizinha, não tenho nota fiscal. Mas a pessoa precisa do bem, por que não posso confiar nela?”, afirma Kanashiro.
A Mapfre percebeu ainda a possibilidade de engajar profissionais da própria comunidade.
Um exemplo: um encanador que já é prestador de serviços da empresa e mora na favela pode atender seus vizinhos – o microsseguro empresarial prevê assistência gratuita de profissionais como eletricista, chaveiro e vidraceiro, além de atividades como reparo de ar condicionado, eletrodomésticos, tapumes, entre outras.
“Em Paraisópolis, tem muito prestador de serviço que já trabalha com a Mapfre, mas atendendo outros públicos, não o pessoal daqui”, explica Fátima Lima.
“Quando a gente for para outras comunidades, a gente vai fazer exatamente esse trabalho de identificação de prestadores de serviço locais que possam também atender a região de forma rápida”, acrescenta ela.
Quebrando preconceitos
A incursão na favela também serviu para desmistificar preconceitos. A Mapfre começou o piloto de Parelheiros com os famosos “pastinhas”, termo utilizado no mercado para se referir aos vendedores de seguros.
A companhia capacitou quatro moradores, mas a iniciativa não deu certo. “O que eu mais ouvia era: ‘A seguradora nunca veio aqui, por que eu vou confiar num corretor agora?’ Não teve adesão”, afirma Kanashiro.
A Mapfre temia também a possibilidade de muitos casos de fraudes ou ainda de alta sinistralidade – mas nenhuma dessas situações aconteceu ao longo do desenvolvimento do piloto, segundo Fátima Lima.
“A gente percebeu uma espécie de autorregulação local. Se acontecer algum sinistro, a geração de renda para, as pessoas não tem como botar comida na mesa ou pagar as contas que eles precisam”, afirma.