Fama e Gaia criam fundo para financiar a sociobioeconomia

Inspiradas no modelo de microcrédito, casas querem emprestar a pequenas associações e cooperativas ignoradas pelo mercado financeiro

Fama e Gaia criam fundo para financiar a sociobioeconomia
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Dois nomes pioneiros no mundo dos investimentos sustentáveis, a gestora Fama Re.capital, de Fabio Alperowitch, e a securitizadora Gaia, de João Paulo Pacífico, se uniram para botar de pé dois fundos de crédito dedicados a fomentar a sociobioeconomia dos biomas brasileiros. A ideia é financiar projetos e pessoas geralmente desassistidas pelo mercado financeiro.

Um dos veículos, o Fama Gaia Sociobioeconomia FIDC, voltado para todos os biomas do país, já está em operação. O outro, destinado exclusivamente a financiar projetos na Amazônia, ainda está em desenvolvimento.

Bebendo dos conceitos de microcrédito, os fundos pretendem emprestar recursos para iniciativas de agricultura familiar, regenerativa e extrativismo responsável. A ideia é oferecer taxas de juro abaixo das de mercado e também estruturas de garantia alternativas para associações e cooperativas, por exemplo. 

“Não podemos falar de futuro planetário e da humanidade sem falar em sociobioeconomia. É central na agenda e precisamos fazer o dinheiro chegar lá. Não através de meia dúzia de doações, mas efetivamente fazendo isso rodar, com bastante profissionalismo”, diz João Pacífico.

“Quando a gente fala do bioma amazônico, por exemplo, não se tem escala, o acesso é remoto. É muito mais fácil para uma instituição financeira fazer um cheque de R$ 1 bilhão para uma empresa do que ficar olhando para microcréditos”, afirma Fabio Alperowitch.

Os dois fundos serão liderados pela executiva Andrea Alvares, que preside o conselho do Instituto Ethos e atuou ao longo de três décadas em companhias como P&G, Natura e PepsiCo. “A Andrea é uma executiva com muita experiência e intenção fortíssima de gerar impacto”, diz Pacífico.

No fundo multibiomas, já há duas operações selecionadas para receber recursos.

Uma delas é o Instituto Conexões Sustentáveis (Conexsus), que apoia negócios comunitários em biomas como Amazônia, Caatinga e Cerrado. “Nessa operação, a Conexsus depois ‘explode’ [o dinheiro] em várias cooperativas, de diferentes biomas”, afirma Alvares. A outra operação é com uma organização que atua na Mata Atlântica.

Além de atuar em geografias diferentes, os dois fundos se distinguem pelo tipo de investidor que pretendem alcançar.


O fundo voltado para a Amazônia mira organismos multilaterais e bancos de desenvolvimento. “Algumas conversas nos mostraram claramente que existem recursos carimbados. Muitos investidores, principalmente bancos multilaterais, têm recursos específicos para o bioma amazônico”, diz Alperowitch.

Já o fundo multibiomas é voltado a investidores pessoa física. Por ora, ainda está restrito a investidores profissionais (dois já se comprometeram e um terceiro está em conversas avançadas), mas em breve deve ser aberto a investidores qualificados e, num terceiro momento, chegar ao varejo por meio de plataformas de investimento. 

(Os investidores profissionais são aqueles que comprovam ter ao menos R$ 10 milhões aplicados, enquanto o qualificado deve ter ao menos R$ 1 milhão.)

“Essa é a grande tese de transformação: que um investidor comum possa investir em impacto a taxas bem razoáveis”, diz Andrea Alvares. 

“É praticamente um movimento para poder conscientizar pessoas físicas em relação a investimentos de impacto”, acrescenta Alperowitch.

O retorno líquido sinalizado para o investidor do fundo é de CDI + 2%. Para entregar esse retorno e conseguir cobrir seus custos e se remunerar, o fundo precisaria emprestar a CDI + 3,5%, segundo Alperowitch. Mas o objetivo, diz ele, é que o financiamento seja efetivado a um custo inferior, mais próximo de CDI + 2% ou até menos que isso. “É um custo compatível com o de empresas grandes.”

Para fazer a conta fechar, o fundo pretende usar mecanismos de blended finance, em que o capital filantrópico entra na equação de diversas formas com o objetivo de reduzir a taxa para o tomador.

Por enquanto, o fundo é fechado, com vencimento em 2030. Mas, ao chegar ao varejo, a ideia é que o fundo tenha liquidez em 180 dias para resgates.

Ainda que mirem bolsos diferentes, Alperowitch diz que a intenção é que ambos os veículos financiem projetos que impactam diretamente na vida das populações locais, promovendo transformações reais – mesmo que isso signifique sacrificar um pouco do retorno.

“A lógica de maximização do retorno é o que nos trouxe para esse buraco em que a gente vive em todos os sentidos. Queremos funcionar com outra lógica.”

A outra lógica

A Fama e a Gaia resolveram juntar forças ainda no ano passado. Alperowitch e Pacífico conversaram sobre a dificuldade de acesso a crédito para negócios tocados por associações e cooperativas que podem ter grande impacto socioambiental.

“A lógica do crédito é basicamente: quero ganhar o máximo possível e ter a maior quantidade de garantias possível. É o inverso de tudo o que a gente quer fazer”, diz Alperowitch.

Para cumprir esse objetivo, a diferença começa na forma de captação dos projetos.

Ainda que, em alguns casos, o próprio fundo possa fazer o contato direto com as comunidades, a ideia é atuar com uma rede de parceiros com presença nos territórios na prospecção das iniciativas. “Eles conhecem microcrédito, conhecem os biomas, associações, cooperativas, quilombolas, ribeirinhos”, diz Andrea Alvares.

As parcerias, segundo Fabio Alperowitch, também são uma forma de estabelecer mais confiança com populações desacostumadas com a presença de um representante do mercado financeiro na porta.

“Por mais que a gente tenha essa intencionalidade e viva isso há muito tempo, continuamos sendo os brancos colonizadores da Faria Lima para essas pessoas.”

Para chegar a um público desassistido, um aspecto fundamental é a flexibilização das garantias exigidas. Em operações de empréstimo tradicionais, os bancos costumam exigir garantias reais, como imóveis ou equipamentos. São bens que podem ser executados, mas são distantes da realidade das associações ou cooperativas que o fundo quer atingir.

Uma das possibilidades é o uso do aval solidário, em que os tomadores membros de uma cooperativa, por exemplo, se avalizam mutuamente – algo usado nos programas de microcrédito e que costuma resultar em baixas taxas de inadimplência. “A gente precisa entender que, nesse mundo, as garantias podem ser bastante exóticas”, resume Alperowitch.

Pacífico relata a experiência da securitizadora Gaia, que já fez algumas emissões de Certificados de Recebíveis do Agronegócio (CRA) para cooperativas agrícolas, inclusive uma operação emblemática para associadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). 

“Nossa inadimplência é irrelevante nas operações que já fizemos”, diz. “O pequeno agricultor familiar valoriza o seu CPF e a relação com ele não é transacional, mas de andar junto e co-construir.”

Impacto na ponta

Uma preocupação central do fundo, diz Alvares, é apoiar apenas projetos que consigam promover de fato impacto social na ponta.

A verificação começa no início do processo, explica ela, com a aplicação de um questionário de triagem.

“Quantas mulheres há na associação e na diretoria dessa associação? Qual é o plano para que mais mulheres participem desse processo? Como é distribuído o valor dentro da associação e como você assegura que esse valor é distribuído?”

Segundo Alvares, ao menos uma iniciativa já foi reprovada por não conseguir demonstrar o impacto social.

“Claramente era uma entidade que conseguiria crédito em outro lugar. Além disso, depois de dez anos de implementação desse projeto, não conseguimos entender como os associados daquela cooperativa iriam efetivamente participar daquela operação e assumir a liderança.”