Como a Catarina Mina leva o artesanato cearense às passarelas

Peças e projetos da grife valorizam e fortalecem artesãs e técnicas ancestrais – e geram impacto social positivo no interior do Estado

Como a Catarina Mina leva o artesanato cearense às passarelas
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Inocência Mendes, 64 anos, a Dona Nega, aprendeu aos 7 a trançar palha de carnaúba e enlaçar fios de crochê para elaborar diferentes peças. Foi com o dinheiro do artesanato que criou os filhos na pequena Aracatiaçu, distrito de Sobral, a 230 km de Fortaleza. E é do artesanato que ela vive até hoje, parte de um grupo de 450 artesãos cadastrados no trabalho realizado pela grife cearense Catarina Mina.

Criada em 2005 pela designer e publicitária Celina Hissa, a marca ganhou espaço no competitivo mercado da moda por aliar design a 12 diferentes linguagens e tipologias artesanais típicas do Ceará, entre elas o crochê, a renda de bilro, o labirinto, o filé e a palha da carnaúba, árvore-símbolo do estado.

A grife fez bonito na mais recente edição do Festival de Cinema de Cannes, na França, em maio passado. Dois de seus vestidos e bolsas passaram pelo tapete vermelho na exibição do filme brasileiro Motel Destino, dirigido pelo cearense Karim Aïnouz.

Um mês antes, a grife tinha estreado na São Paulo Fashion Week, evento de moda mais importante do país. Algumas das artesãs, que estavam sentadas na primeira fila, subiram na passarela no fim do desfile e receberam os aplausos do público.

Dias depois, a marca ganhou um espaço exclusivo dentro da loja Feira na Rosenbaum, na Vila Madalena, em São Paulo. 

O maior diferencial da Catarina Mina ao longo desta jornada de resgate e valorização do artesanato – e de quem vive dele – é a transparência do impacto social que a marca gera em mais de 30 comunidades do Ceará.

Muitas grifes levantam a bandeira da sustentabilidade e falam em soluções para minimizar os impactos negativos do mercado da moda, mas poucas conseguem ser transparentes em suas agendas ESG.

Opacidade

Segundo o Índice de Transparência da Moda Brasil 2023, levantamento realizado pelo coletivo Fashion Revolution com 60 das maiores marcas e varejistas de moda nacionais, quase metade (48%) ainda é muito pouco ou nada transparente. O estudo leva em consideração quanto elas divulgam sobre suas políticas, práticas e impactos sociais e ambientais.

Para controlar e mensurar seu impacto sobre os 450 artesãos já cadastrados na rede – 285 deles engajados na produção ativa de peças –, Hissa criou, em 2022, uma Célula de Impacto Socioambiental Positivo na Catarina Mina.

A equipe acompanha os artesãos de perto, coleta dados e indicadores, garante a mensuração dos impactos e a transparência de todas as ações e criações da marca. “Listamos tudo, inclusive em quantas peças cada técnica foi usada, para garantir que todas sejam utilizadas. Não podemos deixar nenhum grupo de artesãos sem trabalho, todos devem estar engajados”, explica Hissa.

A iniciativa veio com o crescimento do negócio. Nos últimos dois anos, a empresa cresceu 80%, e a projeção para 2024 é de outros 50%.

“No início, eu mesma viajava até todas as comunidades e participava das rodas de conversa, mas isso tem sido cada vez mais difícil, então estruturamos o núcleo”, conta a fundadora.

“A Catarina Mina não trabalha apenas com artesanato, mas principalmente com pessoas que criam e vivem dele. E tomamos todos os cuidados para que elas sejam a parte mais importante do processo.”

Os dados coletados resultaram no primeiro relatório de impacto da grife, lançado no início deste ano. Segundo o documento, a rede afeta direta ou indiretamente mais de 980 pessoas que compartilham a mesma casa com as artesãs.

Artesãs de Aracatiaçu, distrito de Sobral, no interior do Ceará

Hissa sempre usa o gênero feminino, uma vez que 99% são mulheres. “Muitas sustentam suas famílias (92,4% são mães, e 38,2%, avós), e várias transformaram suas vidas com os projetos que realizamos.”

Histórias por trás de cada peça

A Catarina Mina voltou seu foco às artesãs em 2015, quando lançou seu primeiro projeto, o FIA Oficina de Artesãs, que reuniu 30 mulheres em Aracatiaçu.

A marca já trabalhava com artesanato, mas durante as rodas com o grupo Hissa percebeu que o caminho para fortalecer e valorizar as artesanias era um só: capacitar, dignificar e remunerar de maneira justa quem vive delas.

Cerca de 20% do faturamento médio da Catarina Mina no ano passado – R$ 4,7 milhões – foi destinado aos grupos de artesãs. 

Também em 2015, a grife criou uma iniciativa pioneira no mercado de moda nacional. A campanha #UmaConversaSincera abriu publicamente todos os custos envolvidos na produção de cada peça.

Foi um passo importante para envolver o consumidor final no processo e aproximá-lo das artesãs. “E fortaleceu nossa transparência”, afirma Hissa.

Rastreamento até a origem

Quatro anos depois, em 2019, os produtos passaram a carregar um QRCode. Acessado, o código revela a história, o rosto da artesã que o confeccionou e onde ela vive. De lá para cá, a marca já compartilhou mais de 400 histórias de mulheres e homens de cerca de 20 comunidades. 

Conhecer de perto e compartilhar essas realidades foi fundamental, segundo Hissa. O conhecimento é adquirido e compartilhado pela empresa com outros grupos por meio de diversos projetos sociais. Para viabilizá-los, a Catarina Mina busca investimentos de empresas privadas e parcerias com o Sebrae e prefeituras.

“O Olê Rendeiras, em 2019, foi um dos maiores e teve duração de três anos.” O projeto abrangeu 14 comunidades e mais de 100 mulheres rendeiras, na cidade de Trairi, conhecida como “a terra da renda de bilro”.

Entre as noções de empreendedorismo estão precificação, abertura de empresa, emissão de nota fiscal e bancarização. “Pagávamos muitas mulheres por meio das contas de seus maridos, e algumas sequer viam esse valor.”

A capacitação transformou vidas. “Já ouvimos diversos casos de vítimas de violência doméstica que, com uma remuneração mais justa de seu trabalho, conseguiram sair daquela situação”, conta Hissa.

Foi em rodas de conversa regadas a cafezinho que a grife desenvolveu uma metodologia colaborativa própria. A Trilha Artesã começa com a visita de Hissa ou alguém de sua equipe a novos territórios, para diagnosticar e mapear os saberes daquela região.

Então são organizadas oficinas em que o objetivo inicial é ouvir. Ao longo da trilha, há um fortalecimento dos grupos – muitos formalizam-se como associações –, intercâmbio de técnicas e olhares e experimentação de novas matérias-primas, mais sustentáveis.

Vendas diretas

Bolsas, roupas e outros acessórios do catálogo da Catarina Mina são atualmente comercializados em 40 lojas pelo país e em 17 países, entre eles Emirados Árabes, Estados Unidos e Itália. A grife começou vendendo em multimarcas, e seu carro-chefe eram (e ainda são) as bolsas de crochê – há modelos que custam quase R$ 2000.

A virada do atacado para o varejo começou durante a pandemia. Com dezenas de peças já prontas para entrega, a marca viu as lojas cancelarem quase todos os pedidos. “Vendendo ou não, precisávamos pagar as artesãs”, conta Hissa. Ela então colocou tudo no e-commerce da Catarina Mina.

“Mostramos as histórias de mulheres das duas comunidades que haviam trabalhado naquelas peças e que precisavam do dinheiro para sobreviver. Apostamos na sensibilidade do consumidor, e deu certo.”

Até então, o atacado representava 70% da receita da empresa. Hoje o varejo representa 60% do negócio, com um crescimento do atacado internacional para 20%. O atacado nacional não passa dos 20%.

“Agora queremos crescer ainda mais no varejo on-line e ampliar a distribuição do nosso e-commerce para além do mercado nacional, alcançando também o público final internacional”, diz Hissa, que precisou reestruturar a governança da empresa para este novo passo. 

Kaftan da grife na São Paulo Fashion Week

Nos últimos três anos, a Catarina Mina foi acompanhada pela articuladora de negócios de impacto cearense SOMOS UM. “Na modelação do negócio e nos ajustes na gestão”, diz a fundadora. “Além disso, tivemos um apoio financeiro de um investidor anjo. Além da expansão, no varejo precisamos de capital de giro e de estoque.”

No desfile da São Paulo Fashion Week deste ano, por exemplo, os 40 looks da grife foram criados em três meses, e todos eram peças únicas. “No ano que vem, teremos um planejamento comercial atrelado à coleção, para que algumas peças já estejam disponíveis para venda.”

Mesmo com uma coleção apenas por encomenda, o resultado da estreia na passarela foi um sucesso. O vestido Mandacaru, por exemplo, recebeu 60 pedidos. Feito à mão em renda de filé do Jaguaribe, com detalhes em crochê, a peça é vendida por R$ 3.898,90.