Banco Central do Brasil dá 'norte'​ à transição resiliente de baixo carbono

Em artigo de opinião, a especialista em políticas públicas de mudança do clima, Natalie Unterstell, avalia que autoridade entendeu os riscos impostos à política monetária e à estabilidade financeira

Banco Central do Brasil dá 'norte'​ à transição resiliente de baixo carbono
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Vivi para ver o Banco Central do Brasil falando de mudança do clima como gente grande.

Considero acertada a estratégia do BC em anunciar seu alinhamento às demais autoridades monetárias quanto à gestão dos riscos climáticos. É um assunto que tarda, mas entra bem na agenda pública.

Ainda que tenham faltado detalhes sobre o que exatamente será realizado, as grandes pedras “foram cantadas” pelo atual banqueiro central do Brasil, Roberto Campos Neto, e sua equipe.

Particularmente, é positivo que Campos Neto demonstre entender que a mudança do clima impõe riscos à política monetária e à estabilidade financeira, obrigações precípuas do BC.

Como ele mesmo disse, “não tem como controlar inflação sem considerar os impactos da mudança do clima”. Não tem mesmo.

Essa é uma agenda que evoluiu muito nos últimos anos, mas muito mais rapidamente fora do Brasil. Desde 2013, os bancos centrais ‘do norte’ já vêm considerando mudança do clima nas suas agendas. Também os investidores e gestores de ativos acordaram há algum tempo para o fato de que é melhor planejar uma transição do que enfrentar um “jump to distress”.

Esse termo foi cunhado por Mark Carney, ex-presidente do Banco da Inglaterra. O conceito serve para mostrar que a eventual saída repentina de investidores de alguns setores e mercados em função de impactos climáticos ou depreciação pela descarbonização pode ser fatal.

Aqui, através de um programa chamado Brasil 2040 que Sérgio Margulis e eu coordenamos na Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) há alguns anos, entendemos que a totalidade dos investimentos públicos brasileiros falhava em considerar os riscos climáticos em sua programação. Investimos em ciência e em modelagem para entender diversos cenários e o que poderia ser feito para provocar a adaptação.

Até agora, nossos governos têm investido em tecnologias e infraestruturas públicas obsoletas que não vão se comportar como esperado nessa nova realidade climática.

Belo Monte é um desses exemplos de investimento “feito para falhar” em razão das projeções climáticas de mudança no regime de chuvas para a região Norte do país.

Por isso, é muito importante que o BC dê “o norte” para o mercado neste momento, criando expectativas claras de transição de baixo carbono e resiliência.

A partir disso, os agentes econômicos vão se movimentar e inclusive se antecipar, o que pode redundar em uma atualização dos tipos e da qualidade dos investimentos.

Como já evocado na carta de ex-ministros da Fazenda e ex-banqueiros centrais do país publicada pela iniciativa Convergência pelo Brasil em julho deste ano, essa é a direção desejável em temos de retomada verde e futura recuperação econômica.

Sim, a autoridade monetária pode falhar feio na estabilização das trajetórias de preços dos bens e serviços se não levar em conta a maior frequência de eventos como extremos de temperatura.

Essas podem — e vão, eu diria — quebrar safras agrícolas. Já a intensidade de fenômenos de lento progresso, como o aumento do nível do mar, afetará os setores portuários e imobiliários.

Não se trata de ficção científica nem de alarmismo inconsequente.

Choques como esses são difíceis (em alguns casos, impossíveis) de prever. Por isso é preciso modelar e trabalhar com cenários. Há também muitas incertezas sobre sua persistência, amplitude e magnitude.

É também significativo que o BC esteja estudando e tenha se comprometido publicamente com o tratamento de risco climático nos testes de estresse (quando é simulado o pior cenário econômico e como o sistema financeiro se comportaria).

A partir dos testes de estresse, os agentes econômicos terão de se adaptar. Sim, fazer adaptação climática real!

Como dito pelo diretor de regulação do BC, Otávio Damaso no evento realizado pelo BC, ontem, “resultados ruins nos testes de estresse vão requerer mais capital para fazer frente aos riscos, então instituições financeiras vão ter atenção especial a esse critério e vão se adaptando imediatamente”.

As projeções climáticas alertam para a necessidade de uma visão de longo prazo que introjete os impactos da mudança do clima sobre a agenda macroeconômica.

Nesse sentido, acho promissor o anúncio de que o BC prevê a adoção obrigatória dos princípios da Task Force on Climate-related Financial Disclosures em 2022, e fará consultas públicas em 2021. É quase um “forward guidance” para mudança do clima — do tipo que a gente mais precisa aprofundar em nosso país.

Em tempos de recessão econômica global associada à pandemia da covid-19, espero que, no mínimo, as demais autoridades públicas brasileiras, de outros campos, tomem conhecimento dessa agenda de estudos e de compromissos do BC, e a utilize em abordagens de planejamento de curto, médio e longo prazos.

Mas, mais do que pensar, todos esses atores terão de investir e responder de modo visível e coletivo aos novos riscos impostos ao Brasil.

* Natalie Unterstell é especialista em políticas públicas de mudança do clima. Mestre em administração pública pela Universidade de Harvard e graduada pela FGV-EAESP, foi negociadora do Brasil na UNFCCC. Atualmente dirige o Instituto Talanoa, de regulação e riscos climáticos, e coordena também o projeto Política por Inteiro.