A startup de créditos de reciclagem de embalagens Eureciclo acaba de levantar R$ 100 milhões em capital com planos de dar gás à infraestrutura de reciclagem no país e evitar que um gargalo de oferta se transforme num obstáculo ao seu próprio crescimento.
A rodada série B foi liderada pela Ória Capital, gestora criada por ex-executivos da antiga Datasul (hoje Totvs) e que investe em negócios de tecnologia B2B, como a plataforma de comunicação Zenvia e a Gupy, de recursos humanos.
A Redpoint, que em 2020 havia feito a série A da empresa, no valor de R$ 25 milhões, acompanhou o aporte, que contou com outros três novos investidores: a gestora de impacto Rise Ventures, a Endeavor Scale-Up e o Tera, family office dos sócios do Pátria Investimentos. Positive Ventures, Lanx Capital e HSI (da família Seibel), que entraram nas rodadas anteriores, não acompanharam a rodada.
A Eureciclo criou do zero no Brasil o modelo de créditos de reciclagem de embalagens pós-consumo. Com o emprego de tecnologia de blockchain, a startup faz o registro de notas fiscais de reciclagem emitidas por aterros sanitários, operadores privados de coleta e cooperativas de catadores e as transforma em títulos negociáveis, que podem ser vendidos às empresas.
Esses certificados servem para que as empresas façam a compensação do lixo pós-consumo gerado pelas embalagens dos seus produtos, numa lógica semelhante à dos créditos de carbono adquiridos para compensar as emissões de gases de efeito-estufa.
Seis anos depois que a empresa começou a operar, os certificados acabam de ser institucionalizados por um decreto presidencial, dando mais segurança jurídica ao instrumento.
Com modelo semelhante ao da Eureciclo, existem a francesa Citeo, a alemã Der Grüne Punkt (DSP) e a americana Rubicon, apoiada pelo ator Leonardo Di Caprio e que abriu seu capital na Nasdaq na virada do ano, avaliada em cerca de US$ 2 bi. E é nelas que a brasileira se espelha para balizar seu potencial de crescimento.
Quando começou, o grande drama da empresa era gerar demanda para o produto que tinha inventado, ou seja, convencer as empresas de que podiam cumprir com as obrigações legais comprando os créditos em vez de operar estruturas próprias de logística reversa. “Era como vender terreno na lua”, recorda Thiago Pinto, CEO da Eureciclo.
Mas, depois de chegar a 150 funcionários, atender a 7 mil empresas no país e faturar R$ 30 milhões em 2021 – o dobro da receita de 2020 –, a Eureciclo entendeu que agora pode se deparar com uma barreira intransponível dentro de pouco tempo. E decidiu agir.
“Se não houver investimento em infraestrutura para reciclagem, vai ter um gargalo de oferta, com potencial disrupção de preço”, diz Pinto.
Ele estima que nos próximos anos o país precisará triplicar a infraestrutura existente, apenas para cumprir a meta inicial da política nacional de resíduos sólidos, que determina que as empresas retirem do ambiente 22% das embalagens pós-consumo (percentual que chegará a 45% em 2031). A Eureciclo calcula que hoje o país faça a logística reversa de 3% a 7% das embalagens.
Por infraestrutura de reciclagem entenda-se tanto as cooperativas de catadores formalizadas e capazes de emitir notas fiscais do material vendido, quanto a instalação nos aterros das chamadas ‘murfs’ (materials recycling facilities) – grandes máquinas que rasgam os sacos de lixo e, ao longo de uma esteira, conseguem separar os resíduos orgânicos dos secos e segregar os diversos materiais. Cada máquina custa em torno de R$ 50 milhões.
Direcionando capital
Boa parte dos recursos levantados com a rodada será usada para fomentar o investimento nessas frentes. Como plataforma de certificados de reciclagem, a empresa está impedida por lei de operar a reciclagem diretamente, mas pode atuar como indutora.
A empresa está trabalhando para criar dois fundos com o objetivo de direcionar capital para fortalecer o ecossistema de reciclagem.
Um será um Fundo de Direitos Creditórios (FIDC) para fazer a antecipação de receita para os atores da cadeia. Hoje a empresa tem feito essa antecipação de receita em seu balanço, mas a ideia é criar um veículo próprio para isso, atraindo capital de terceiros.
Outro deve ser um fundo de investimento em participações de infraestrutura (FIP-IE), para atrair investidores para projetos de reciclagem. “Até agora não entraram grandes investidores de infraestrutura no setor; e muito porque não existia a viabilidade econômica da reciclagem. O crédito cria as condições para isso acontecer”, diz Pinto.
Nesse sentido, a entrada da Tera no capital da Eureciclo foi estratégica. O Pátria é uma das principais casas brasileiras em investimento em infraestrutura e a ideia é que aporte seu conhecimento para ajudar a startup a estruturar o fundo.
Embora não vá colocar capital próprio nos fundos, a Eureciclo incorre em gastos de estruturação, inclusive para desenvolver os projetos que farão parte do fundo de infra.
Outro destino do dinheiro será a capacitação e formalização das cooperativas de catadores. “O próprio decreto presidencial impôs algumas condições para a formalização. Precisamos investir para que as cooperativas continuem no mercado gerando créditos”, diz Pinto.
A reciclagem de papelão e latas de alumínio não é um problema – no caso das latinhas o Brasil tem uma taxa de quase 100%. O gargalo de infraestrutura está em vidros e plásticos. E isso já tem se refletido nos preços dos créditos.
A cada um ou dois meses a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) realiza leilões de créditos de reciclagem para atender à demanda de suas associadas. A Eureciclo costuma ser a principal provedora dos créditos.
Dois anos atrás, os certificados chegavam a sair a R$ 60 por tonelada de plástico e neste ano têm ficado acima de R$ 100 a tonelada, batendo em R$ 150 em alguns certames.
No ano passado a Eureciclo gerou créditos para 200 mil toneladas de embalagens e espera chegar a pelo menos 400 mil toneladas em 2022 (a receita também deve pelo menos dobrar). Seu market share é estimado em 50% a 70% dos créditos de reciclagem, dependendo do Estado. Mas o mercado como um todo teria potencial para crescer cerca de 100 vezes.
“A empresa desenvolveu a base e o caos da reciclagem está um pouco organizado. Agora não tem como crescer sem desenvolver o ecossistema”, diz Bárbara Alvim, sócia da Ória Capital.
Governança e transparência
Outro ponto crucial na agenda de investimentos pós-rodada é a criação de compliance e governança mais fortes para os créditos.
Segundo Thiago Pinto, essa foi uma preocupação trazida pela Ória. “Como estamos criando esse mercado, é preciso criar padrões o mais robustos possível, para evitar que os créditos entrem em descrédito”, diz ele.
“É uma questão evolutiva. Hoje os créditos já são seguros, no sentido de garantir que não existe venda dupla. Mas, como estamos falando de padrão, tem como melhorar”, diz Alvim. “A ideia é dar um passo a mais em termos de rastreabilidade da cadeia de reciclagem.”
Mercado derretido
O anúncio da rodada acontece num momento de derretimento do mercado que pegou em cheio fundos de venture capital e startups.
O fato de a empresa estar desenvolvendo um mercado novo e que tem metas de cumprimento definidas em lei foi relevante para a captação acontecer. “Estávamos vendo um valor intrínseco”, diz Alvim. “Nossa tese é muito voltada a crescimento controlado, com todos os botões à mão para levar as empresas do portfólio ao ‘breakeven’ se necessário.”
O aporte na Eureciclo foi o último investimento do fundo 3 da Ória, que está em processo de captar um quarto.
A avaliação da startup, segundo Pinto, não seguiu “múltiplos esticados de receita” e foi feita por fluxo de caixa descontado. Enquanto muitas startups têm anunciado demissões, ele faz planos de contratar pelo menos mais 30 pessoas até o fim do ano.