Os próximos meses prometem ser decisivos para o futuro do mercado voluntário de créditos de carbono. Os reflexos serão sentidos no coração da Amazônia, onde empresas brasileiras vêm fazendo investimentos milionários para lucrar com a proteção da floresta.
Existe um problema de confiança dos dois lados da equação. Os vendedores precisam provar que estão entregando as prometidas reduções ou remoções de gases de efeito estufa da atmosfera.
Acuados pelas crescentes acusações de greenwashing, os compradores têm de se certificar de que as afirmações públicas feitas com base na compra de créditos têm fundamento.
Não são questões novas. Desde sua concepção, há 15 anos, a ideia de compensar emissões de CO2 é alvo de críticas que vão da falta de transparência na formação de preços às alegações de que os offsets seriam uma “licença para poluir”.
A demanda criada pela onda de compromissos corporativos net zero parecia o sinal de que as atribulações tinham ficado para trás. Até bem pouco tempo o otimismo era palpável.
O volume de transações e a geração de créditos dobraram entre 2020 e 2021. Mas o ânimo arrefeceu no ano passado. O mercado andou para o lado em 2022. Hoje o setor está no “limbo”, na definição da empresa de informações S&P Platts.
Reportagens publicadas no começo do ano por um consórcio dos jornais The Guardian e Die Zeit e do site SourceMaterial cristalizaram essa mudança de humor.
Baseados em estudos acadêmicos, os veículos analisaram créditos de carbono de desmatamento evitado e concluíram que 94% deles mentiam ou exageravam seu impacto climático.
Os textos caíram como uma bomba no setor inteiro e causaram preocupação especial entre os desenvolvedores de projetos de geração de créditos brasileiros. Os créditos avaliados, conhecidos como REDD+, são a principal modalidade gerada no país.
Embora contestada por suas inconsistências metodológicas, a análise deixou os compradores com medo, diz Janaína Dallan, co-CEO da Carbonext, uma companhia que desenvolve projetos de preservação da floresta para geração de créditos.
As emissões de novos créditos no primeiro trimestre caíram 26% em comparação com o mesmo período do ano passado, segundo a Sylvera, uma startup que faz ratings desses ativos.
O uso efetivo para compensações por parte dos compradores finais, que corresponde à retirada dos créditos de circulação, recuou 11%. Essa prática, chamada de “aposentadoria”, é considerada o principal indicador da saúde do mercado.
A ponta dos vendedores
É mais fácil entender a crise do mercado de carbono examinando separadamente as questões de vendedores e compradores.
No lado da oferta, a mira dos críticos está apontada para o sistema chamado REDD+, mais especificamente para a forma de cálculo dos créditos apurados.
Esses projetos são remunerados com a geração de créditos de carbono em troca da proteção de áreas de vegetação nativa ameaçadas pelo desmatamento.
Grosso modo, traça-se uma linha de base da devastação esperada; o desmatamento evitado é convertido em toneladas de CO2.
O problema está nessa tentativa de “prever o futuro”, como diz o pesquisador Britaldo Soares, da Universidade Federal de Minas Gerais. “Quanto mais empinada a linha de base, mais [o responsável pelo projeto] ganha [com a geração de créditos].”
A principal crítica de Soares diz respeito aos vetores de destruição da floresta considerados nas premissas dos projetos.
Em muitos casos, são considerados fatores locais, mas a dinâmica do desmatamento é mais ampla e pode envolver decisões no nível político, afirma o pesquisador. “Um exemplo é o que vimos no governo Bolsonaro.”
As desenvolvedoras de projeto brasileiras, reunidas na Aliança Brasil Nature-Based Solutions, afirmam que as avaliações feitas nas reportagens se basearam em um método equivocado e fizeram extrapolações indevidas.
A Verra, maior certificadora de créditos do mundo e responsável por atestar os créditos apontados como problemáticos, afirmou que suas metodologias garantem “linhas de base robustas” para medir o impacto de projetos REDD.
Farinha do mesmo saco
As reportagens de janeiro concentraram a maior atenção, mas elas não foram as únicas no passado recente a levantar dúvidas sérias sobre a integridade de projetos REDD+.
A suíça South Pole, maior geradora de créditos de carbono do mundo, foi acusada de exagerar em dezenas de vezes os créditos gerados em uma iniciativa no Zimbábue.
Em março, uma reportagem da TV australiana apontou um problema de outra natureza: a exploração das populações em que são realizados os projetos.
Comunidades pobres de Papua Nova-Guiné foram induzidas a aceitar acordos sem entender as consequências do que estavam assinando – e depois não receberam o dinheiro prometido.
Um dos desafios imediatos para as desenvolvedoras é provar que nem todas as empresas são iguais.
“Tem projeto ruim? Tem. Tem linha de base inflada? Tem. Mas não é tudo farinha do mesmo saco”, diz Janaína Dallan, da Carbonext.
A outra ponta
Do outro lado do balcão, acontece outra conversa importante.
Hoje, vários tipos de declarações públicas ou campanhas de marketing que anunciam “neutralidade de carbono” se baseiam nessas compensações, ou offsets, em inglês.
É assim que a Apple diz que neutraliza o impacto da fabricação dos iPhones, e a Gol, o combustível queimado por seus aviões, para ficar em apenas dois exemplos típicos.
Mas um movimento nascente na Europa quer impor limites mais estritos sobre as comunicações com os consumidores, inclusive as sustentadas em compensações de carbono.
Um estudo recente da Comissão Europeia apontou que, de um grupo de 150 afirmações ambientais ou climáticas, mais de metade era “vaga, enganosa ou infundada”.
No Reino Unido, uma proposta em estudos só vai permitir declarações como “neutro em carbono” mediante comprovações.
Subindo a barra
Um conjunto de iniciativas quer ajudar a separar o joio do trigo, tanto do lado da oferta quanto da demanda.
O sucesso dessas tentativas de autorregulação – o que não é uma garantia – pode ser determinante para o futuro dos créditos de carbono como uma arma relevante na luta contra a mudança climática e no fluxo de capital privado para o mundo em desenvolvimento.
No lado da oferta, a iniciativa Core Carbon Principles (CCP) divulgou no fim de março uma lista de princípios básicos que devem ser observados pelos vendedores de créditos.
A parte mais aguardada do trabalho, porém, é outra: como os princípios serão aplicados na prática. A publicação é prometida para meados do ano.
O plano do Integrity Council for the Voluntary Carbon Markets envolve examinar as entidades certificadoras – como a Verra, de longe a mais utilizada – e também os diferentes tipos de crédito.
O objetivo final é que os créditos já sejam emitidos com um selo que ateste integridade climática, ambiental e social.
As intenções são nobres, mas o fato é que uma camada extra de burocracia será criada – e ainda não se sabe o que vem por aí. Existe o temor de que o pacote de exigências seja rigoroso demais.
“Governança é um exemplo. Uma coisa é pedir isso na Europa, outra é na República Democrática do Congo ou no interior do Pará”, diz Plinio Ribeiro, da Biofílica Ambipar.
Ele acredita que as novas normas serão importantes e lembra que a própria Verra vai soltar uma atualização metodológica até o fim do ano.
“Não é incomum que novos mercados passem por isso”, diz Andrea Abrahams, diretora de mercados voluntários da International Emissions Trading Association, uma entidade que reúne mais de 300 stakeholders do mercado de carbono.
“Inicialmente essa nova complexidade vai dificultar as coisas para todos os participantes”, afirma ela.
No lado da demanda, duas iniciativas de autorregulação correm em paralelo. O Voluntary Carbon Markets Integrity Initiative, entidade que atua do lado dos compradores de créditos de carbono, vai publicar no final de junho um código de conduta próprio.
A Science-Based Targets initiative (SBTi), que confere um selo de qualidade para os planos net zero das empresas, também deve divulgar nos próximos meses seu próprio conjunto de orientações.
Ninguém vai se pronunciar abertamente contra medidas que evitem o greenwashing, é claro, mas existe o risco de que as diretrizes não conversem entre si e, mais importante, que parte significativa da demanda desapareça.
Uma ideia que vem ganhando adeptos atribui aos créditos somente uma “contribuição” para o clima e o desenvolvimento sustentável, e não mais uma compensação por emissões de CO2.
“É uma maneira mais honesta para as empresas se comunicarem”, afirma Jonathan Crook, da Carbon Market Watch, centro de estudos europeu especializado na política de carbono.
A certificadora suíça Gold Standard já tem uma orientação para os clientes que prefiram usar os créditos com fins de “impacto”, e a ideia também foi encampada no âmbito da Convenção do Clima.
Distração ou solução?
A humanidade emite todo ano algo como 50 bilhões de toneladas de CO2 ou o equivalente em outros gases de efeito estufa.
No ano recorde de 2021, os créditos de carbono voluntários gerados não passaram de 150 milhões, uma parcela ínfima do total de emissões.
Eis um argumento muito usado pelos críticos: além das dúvidas quanto ao funcionamento, o mecanismo tem impacto desprezível e desvia a atenção da necessidade de parar de queimar combustíveis fósseis – o que realmente fará diferença.
Uma corrida bilionária está em curso para viabilizar alternativas tecnológicas que retirem o CO2 do ar e o coloquem de volta no fundo da terra.
Essas inovações garantem que os gases não voltarão a escapar, contornando uma limitação importante dos créditos baseados na natureza – árvores podem ser derrubadas, ou pegar fogo.
Mas essa indústria nascente das remoções de carbono ainda engatinha, e o custo do serviço é proibitivo: uma tonelada de CO2 removida custa de US$ 250 a US$ 700. Um crédito florestal de boa qualidade pode custar de US$ 10 a US$ 15.
O balanço de carbono é fundamental, mas não é o único aspecto das chamadas soluções baseadas na natureza.
O dinheiro investido na proteção de uma floresta também beneficia a biodiversidade e pode melhorar a vida de populações que há centenas de anos, às vezes milênios, cuidam de áreas preciosas do planeta.
“As remoções de CO2 não podem tirar o lugar da necessidade de acabar com o desmatamento”, diz Andrea Abrahams, da IETA. “Precisamos conservar as florestas e a biodiversidade, e claramente faltam recursos para isso.”