Sagatrissuinorana. É uma obra de nome difícil que ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro infantil e melhor livro do ano em 2021.
O livro reconta a história dos três porquinhos, conhecida de cor e salteado por qualquer criança e adulto do mundo ocidental. Na obra premiada, porém, o conto tem como cenário de fundo o estado de Minas Gerais no século 21. E, acima de tudo, é uma obra de não-ficção.
Paralelamente à fábula, o livro narra duas tragédias ambientais.
A primeira ocorrida há exatos três anos, quando a barragem da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, zona metropolitana de Belo Horizonte (MG), rompeu e varreu com lama e rejeitos de minério de ferro comunidades do município e de seus arredores, matando quase 270 pessoas e deixando mais de 1,3 mil desabrigados.
A segunda tem seis anos. Dessa vez, o rompimento se deu em Mariana, no centro do estado, na barragem de Fundão, matando 19 pessoas e aniquilando um ecossistema gigantesco em torno do rio Doce, que abastece 230 municípios em Minas e no Espírito Santo.
Esses tristes capítulos da história do Brasil são expostos em Sagatrissuinorana pelos autores João Luiz Guimarães e Nelson Cruz, em narrativas paralelas, por meio de imagens, cores, poesia, memória, referências culturais, históricas e afetivas. O texto, que propositalmente adota o estilo do escritor mineiro Guimarães Rosa, é um dos responsáveis pela imersão geográfica do leitor.
Nonada ou como tudo começou
Quando se lançou a recontar a história dos porquinhos, Guimarães (João Luiz, e não o Rosa, numa coincidência de sobrenomes) pensou na lama. Foi inevitável: não conseguiu separar o escritor do jornalista, nem a fábula do fato.
As maiores tragédias humana e ambiental que o Brasil já viveu vieram à cabeça do escritor como o sopro violento do lobo. As imagens da lama que invadiu casas, ruas e vidas vão ficar marcadas para sempre na nossa memória coletiva.
A experiência do editor Zeco Montes, que foi livreiro por 30 anos e hoje comanda a Ozé Editora, pequena, independente e muito premiada, foi essencial para a decisão de entregar o texto ao ilustrador Nelson Cruz, mineiro, artista plástico e também escritor.
“Esse livro fala de mercado, de destruição, de dinheiro, de maldade humana”, afirma Montes. “É uma história necessária”.
Os dois grandes desastres humano e ambiental da nossa trajetória são decorrentes da negligência coletiva. O impacto também é para todos.
Por que não falar dele para crianças?
Por que não abrir uma discussão sobre vida, trabalho e segurança? Sobre crescimento, prosperidade e cuidado com o outro? Será que eles, no futuro, poderão fazer melhor? O livro abre caminho para discutir falhas graves e urgências que o mundo dos negócios não pode continuar fingindo que não vê.
Reportagem dentro da história
Nelson Cruz, o autor das imagens, passou a maior parte de sua carreira na imprensa. Habituou-se a lidar com a tragédia todos os dias.
“Eu não crio o desenho baseado no texto. Eles já estão em mim há anos. Eu pisei no chão de terra de que fala Guimarães em sua obra e pinto as belezas que mexeram com a minha alma”, contou, mostrando que desenha o que viveu, em em live realizada pel’A Casa Tombada em 25 de novembro de 2021, data da entrega do prêmio Jabuti .
Segundo ele, a ilustração para esse livro nasceu ao meio-dia, no dia da notícia sobre o desastre de Mariana e não a partir da leitura do livro. “Escutei que alguém estava coletando água para a população e saí para levar também”, diz ele, que mora em Belo Horizonte, a 120 km do local do primeiro desastre.
“O texto foi o gatilho para contar a história. Foi uma coisa dolorida de fazer”, afirma.
Todos os aspectos do livro foram cuidadosamente pensados para transportar o leitor por inteiro às duas histórias que coabitam suas páginas. De mansinho, camada por camada. Sem pressa, como costuma ser lá em Minas.
Além da palavra escrita, a fonte usada no projeto gráfico simula o texto produzido por uma máquina de escrever, atribuindo um carácter factual e de reportagem à história. Remete, também, ao ofício do escritor. As imagens também são jornalísticas: “as montanhas mineiras estão sendo destruídas”, afirma Cruz.
E no final, uma traição…
Com a terra no pescoço
Hoje são os 54 mil habitantes de Congonhas do Campo, a 89 km de Belo Horizonte, que têm pesadelos com a possibilidade de uma nova onda de fúria da “terra”. O excesso de chuvas no mês de janeiro deixou a população alarmada. A cidade está cercada por 24 barragens, pertencentes a quatro empresas, e pode até desaparecer em caso de rompimentos, segundo estudos de especialistas. Nem mesmo os profetas de Aleijadinho – escultor, entalhador e arquiteto do Brasil colonial – ali expostos foram capazes de prever tamanha incompatibilidade entre o “progresso” e a Terra.
* Em 20 anos de carreira, Paula de Santis escreveu sobre economia e finanças na Gazeta Mercantil, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo e revista Época. Liderou a comunicação corporativa da Whirlpool na América Latina e assessorou a presidência do Instituto Akatu. É jornalista com MBA em Gestão de Negócios Socioambientais e pós-graduação em Economia Solidária pelo ICP em Paris. Escritora, hoje cursa a pós-graduação O Livro para a Infância, n’A Casa Tombada, é mãe do Rodrigo e da Alice e mora na França.