A gigante do ultra-fast fashion Shein faturou R$ 8 bilhões só no Brasil no ano passado com suas roupas massificadas, que trazem as últimas tendências da moda, preços baixos, tecidos sintéticos e uma longa lista de controvérsias ambientais e sociais.
Na contramão de tudo isso, a marca brasileira Flavia Aranha faz vestidos, blusas e calças atemporais, produzidos em algodão orgânico e outras fibras naturais colhidas por agricultores familiares, tingidas com plantas e ervas brasileiras, num modelo que preza por relações econômicas mais justas com os demais elos da cadeia.
Com escala limitada, prevê faturar R$ 9 milhões neste ano.
Seus preços também estão no extremo oposto daqueles praticados pela varejista chinesa. Um vestido de linho pode chegar a quase R$ 2 mil, enquanto um de seda com impressão botânica sai por quase R$ 4 mil. Camisetas em malha de algodão, as peças mais em conta, custam em torno de R$ 200.
É uma contradição, diz a designer e fundadora da marca que leva seu nome.
“Fazemos todo um trabalho que fomenta a cadeia de fornecimento, mas nossa própria cadeia não pode consumir o que ela produz”, diz Aranha. “É uma dor do nosso modelo.”
Flavia Aranha tinha 23 anos e estava em franca ascensão profissional numa grande marca nacional de jeanswear quando quase abandonou o mundo da moda.
Numa viagem à China para prospectar fornecedores em 2007, viu rios tingidos de azul, crianças e idosos atrás das máquinas de costura e cidades de céu cinza.
“Precisei ir até o outro lado do mundo para entender como a cadeia produtiva da moda se sustentava. Entrei numa crise existencial grande”, diz ela.
Mas a mesma viagem apontou um caminho alternativo. Em visita à Índia, conheceu um pequeno ateliê em que mulheres faziam tingimentos naturais de tecidos usando técnicas ancestrais.
De volta ao Brasil, começou a organizar seu desligamento do trabalho, passou um ano viajando pelo país para fazer pesquisas e em 2009 colocou no mundo sua marca de roupas femininas, pioneira no país de um modelo de moda sustentável.
“Desde o começo o meu objetivo era a transformação da cadeia, propor uma lógica inversa à do sistema, desde a matéria-prima até a mão-de-obra”, diz.
Depois de desbravar esse mercado e inspirar outras marcas, sua ideia fixa é conseguir “crescer como forma de ampliar o impacto”.
“A transformação da cadeia só vai se dar quando esses processos forem mais democráticos. Porque, de fato, temos um mercado pequeno ainda na Flavia Aranha.”
Nos últimos anos, a empreendedora resolveu recorrer a investidores para ir mais longe.
A marca fez uma rodada anjo em 2020 e, em 2021, veio uma segunda captação, que contou com um grupo de 15 mulheres investidoras e garantiu a abertura da terceira loja, em Paraty.
Agora, acaba de levantar R$ 2 milhões com um fundo de investimento, o Jataí, para abrir seu quarto ponto de vendas e o primeiro no Rio de Janeiro. (As outras duas lojas ficam em São Paulo)
Mas, ao mesmo tempo em que espera o nascimento da primeira filha, previsto para os próximos dias, Aranha já tem novos planos para ir além da própria marca.
Construindo a teia
Com o nome de Teia, será criada uma holding para abrigar três novos negócios.
O primeiro é uma escola, batizada de Trama, que pretende disseminar o conhecimento resultante das pesquisas realizadas pelo grupo, agregando parceiros para funcionar como um hub de inovação em moda.
“Hoje temos muito conhecimento que fica aqui dentro e isso não faz sentido”, diz ela.
Atualmente, por exemplo, a marca está pesquisando a fibra da malva, planta amazônica para a qual já existe uma cadeia produtiva formada por famílias ribeirinhas, para transformá-la em tecido. A mesma coisa com a bromélia.
O segundo novo negócio, também voltado para o varejo, será batizado de Roda. Nele, a empresa quer vender matérias-primas a granel.
“Vamos vender tecidos por metro, corantes por quilo e todo esse arsenal que compõe nossa cadeia produtiva, para a qual queremos dar mais escala, ao mesmo tempo em que damos acesso a novas marcas pequenas, artistas e artesãos. Toda nossa pesquisa vai se abrir para o varejo.”
Tanto Trama quanto Roda devem ser lançados no segundo semestre deste ano.
Mas é em 2024 que deve nascer o negócio com mais potencial de ser escalado. Com o nome de Cora, vai concentrar pesquisa e inovação industrial para a venda B2B, ou seja, para marcas maiores e fabricantes.
“A Cora será o braço de negócio para escalar essa cadeia produtiva que desenvolvemos”, diz Aranha, completando que, para isso, precisará fazer uma captação específica e mais parruda de novos recursos no próximo ano.
Fair trade na prática
Comércio justo com a cadeia de fornecimento é algo recorrente na fala de Flavia Aranha.
Mas como funciona isso na prática?
Um dos principais insumos da marca é o algodão orgânico e, hoje, todo ele é fornecido pela Rede Borborema de Agroecologia, que reúne e apoia famílias produtoras na Paraíba.
A marca acaba de colher uma nova safra e Aranha explica como se dá a definição de preço. Segundo ela, são os próprios agricultores que calculam detalhadamente o tempo que gastam, o preço da semente, do adubo e dizem o quanto acham que vale seu produto. “Nós analisamos e achamos que faz sentido pagar.”
Quando se trata do serviço de costura, é preciso dar um passo atrás.
“As oficinas de costura já foram tão exploradas que têm dificuldade de saber o que é um preço justo. Então a gente tenta construir isso junto com eles, a partir da lógica do tempo”, diz Aranha.
A equipe da marca faz alguns testes para calcular o tempo médio para produzir cada peça e o que seria uma remuneração justa levando em conta uma jornada de oito horas durante cinco dias na semana. “Nós sabemos que um problema dessa cadeia, que afeta especialmente os imigrantes, é que eles trabalham dezenove, vinte horas por dia, sábado e domingo, para conseguir um salário apenas ok.”
Entre as oficinas de costura que trabalham para a marca, cerca de metade são de imigrantes, especialmente bolivianos.
Todas fazem parte do Instituto Alinha, organização que se propõe a qualificar, certificar e regularizar os negócios, além de melhorar a infraestrutura.
“Quando já passaram por todo esse processo, chegam mais empoderados, sabendo o valor do tempo e do que é justo.” Outra preferência é por negociar diretamente com quem pilota a máquina de costura. “Sempre fomos contra a terceirização e a quarteirização do setor.”
Aos poucos, o crescimento da marca tem transformado uma cadeia que até aqui teve um caráter essencialmente artesanal.
Se antes os tingimentos aconteciam todos nas panelas do primeiro atelier da designer, hoje a marca consegue produzir quinhentos litros de corante em parceria com uma indústria e uma grande estamparia também absorveu parte do processo.
A tecelagem Dalila recebe o algodão agroecológico e o corante de catuaba enviados pela marca e produz as peças de malha de algodão, enquanto a parceira para as roupas de linho é outra fabricante de tecidos, a Lady.
“Nos últimos anos, as indústrias abriram as portas para nossa pesquisa e inovação, ao mesmo tempo em que trouxeram os processos delas, que nos ajudaram a melhorar, a reduzir quantidade de água, tempo e consumo de energia.”