Sequência de eventos extremos arrasa vinícolas do RS

Chuvas no Estado são o 11º evento extremo registrado desde junho, e o mais grave; perdas incluem plantações, maquinário, estoques e enoturismo

Vinícola alagada no Rio Grande do Sul
A A
A A

Parreiras embaixo d’água, arrastadas pela enxurrada ou soterradas por deslizamentos de terra; vinícolas com água batendo um metro na parede; garrafas de vinho e espumante cobertas de lama; estradas e aeroportos fechados impedindo o escoamento da produção. Esse é o cenário no Rio Grande do Sul, maior produtor de uva e de vinho do Brasil.

“Tem produtor que perdeu tudo”, diz o enólogo Eduardo Valduga, diretor do Grupo Famiglia Valduga, um dos maiores do país. 

Ninguém se arrisca a estimar os prejuízos ainda, uma vez que as chuvas não deram trégua, a água segue alta e muitas localidades ainda estão inacessíveis. “É um evento que ainda está acontecendo, esta noite a água subiu 20 centímetros em Pelotas e ainda tem previsão de chuva para os próximos dias”, disse Luís Bohn, gerente-adjunto da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-RS), na quinta-feira passada.

A crise atual é a mais grave de uma série de eventos extremos que atingem a região. Foram 11 desde junho do ano passado, entre eles um inverno com pouco frio, calor fora de época, geadas, ventanias e excesso de chuvas (entre setembro e novembro a precipitação foi igual à média histórica do ano inteiro)

A expectativa para a safra 2023/2024, que já foi colhida, é de 719 mil toneladas, uma queda de 40% em comparação com a anterior. 

Alguns produtores começam a fazer as contas. Com sete hectares de plantação de uvas e uma produção de 30 mil garrafas ao ano, a Vinícola Valparaíso fica localizada no município de Barão, na Serra Gaúcha, principal região produtora do Estado. Naiana Argenta, sócia e filha do engenheiro agrônomo Arnaldo Argenta, fundador da vinícola, faz uma estimativa inicial de R$ 300 mil em perdas. 

O negócio dos vinhos é bastante pulverizado no Rio Grande do Sul, com grande participação de agricultores e empresas familiares. São cerca de 16 mil propriedades, distribuídas por quase 45 mil hectares de plantação, segundo dados da secretaria da Agricultura, Pecuária, Produção Sustentável e Irrigação do Estado (Seapi) e da Emater-RS.

“São 15 mil famílias afetadas diretamente, que tiveram suas estruturas soterradas ou arrancadas, já que as videiras normalmente são plantadas nas encostas e estão sujeitas a enxurradas e deslizamentos de terra”, afirma o técnico.

O estrago só não é maior porque a colheita da atual safra já havia sido encerrada, por isso não há previsão de desabastecimento do mercado para este ano

Mas o maior desafio talvez não sejam as perdas financeiras e sim a motivação, diz Bohn. “São estruturas centenárias. Isso acontecendo com uma frequência tão constante, mais as notícias sobre mudanças climáticas, abala emocionalmente os produtores, que podem repensar o negócio e os investimentos na atividade.” 

Perdas 

Arnaldo Argenta, da Valparaíso, conseguiu acessar a cantina (como os produtores chamam a vinícola, área de produção, envase e estoque dos vinhos) quase uma semana após o início das chuvas, no dia 3 de maio.

Sem energia elétrica e água, o local tinha marca de lama numa altura de 60 centímetros; cinco tanques com capacidades de 50 e 100 litros tombaram, foram contaminados e tiveram que ser descartados.

Máquinas ficaram submersas e precisam secar para serem testadas. Pontes internas da propriedade sofreram rachaduras e vão precisar de reforma para sustentar o trânsito de máquinas novamente. 

Na plantação, algumas videiras e suas estruturas foram derrubadas. Valparaíso produz vinhos naturais, que não usam insumos e agrotóxicos em sua produção.

Em vez dos defensivos, a empresa cobre as videiras com uma espécie de lona plástica para protegê-las da umidade. Com o excesso de chuvas, alguns dos postes de madeira que sustentam essa cobertura caíram e rasgaram parte da lona – que tem um custo de R$ 400 mil por hectare. 

“As consequências nas videiras só veremos na próxima safra, pois não sabemos como elas vão responder a três dias sob 50 centímetros de água, como isso vai afetar a estrutura da raiz”, diz Naiana. A plantação de uvas finas, na parte alta da propriedade, ainda não foi inspecionada por causa do risco de deslizamento. 

Com as chuvas atuais, serão duas safras consecutivas impactadas. Bohn, da Emater, afirma que o próximo ano pode representar uma recuperação. A área de plantio aumentou em torno de 2%, o que pode compensar a destruição das últimas semanas, mas ainda é cedo para tirar conclusões.  

O setor também sofre efeitos indiretos. A umidade facilita a propagação de doenças e pragas, o que exige um maior gasto com manejo e insumos. Alceu Speranza, da Vinícola Speranza, calcula ter usado o dobro de insumos e fungicidas na safra deste ano.

Vendas e entregas paralisadas

A perda imediata do setor é com a paralisação das vendas e entregas. Feiras de negócios foram canceladas ou adiadas, e o turismo de vinícolas está interrompido.

Segundo informações do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) atualizadas na quarta-feira (15), cinco rodovias federais tinham bloqueio parcial e 26 trechos estavam totalmente bloqueados. O Ministério dos Transportes estima que pelo menos 62 trechos de estradas e pontes precisarão ser reconstruídos no Rio Grande do Sul. 

“Não tivemos perdas de estoque, pois conseguimos colocar tudo no alto, mas estamos tendo prejuízo com a falta de escoamento da produção”, afirma Miriam Santiago Krindges, proprietária do Sítio Rosa do Vale (foto), localizado na área rural de Poço das Antas.

Sem conseguir sair da cidade desde o começo de maio, ela estima que tenha perdido cerca de R$ 15 mil em novas vendas em duas feiras: Exposol, em Soledade (RS), e Feira Preta, em São Paulo. Ambos aconteceram no início de maio. 

Outras duas feiras importantes no calendário do setor já anunciaram o adiamento. A ExpoBento e a Fenavinho foram transferidas para julho e, ainda assim, a realização está condicionada à evolução do cenário no Estado. “Se conseguirmos vender e escoar, dá para manter o negócio”, afirma Miriam. 

Reconstrução e solidariedade

“Não vai ser fácil reconstruir, muitos agricultores perderam todo o parreiral”, diz Alceu Speranza. Ele afirma que serão essenciais incentivos de financiamento para que os produtores consigam se reerguer, como aumento de prazo de pagamento e redução do custo do crédito. 

As operações que têm financiamentos devem contar com a cobertura de seguros atrelados ao crédito. Alguns equipamentos usados na produção também contam com seguros obrigatórios, como tratores. Junto com secretarias estaduais, a Emater está em articulação com os bancos que atuam com crédito ao setor e começou a orientar os produtores sobre como fazer a comunicação das perdas. 

Iniciativas de solidariedade buscam incentivar o consumo de vinhos gaúchos, para manter a renda dos produtores e os empregos do setor. Uma delas é a campanha #comprevinhogaúcho, da plataforma Brasil de Vinhos, que conecta vinícolas das regiões afetadas.

Será necessário montar um quebra-cabeça de iniciativas para reerguer o setor, o que vai envolver inovação, diz Eduardo Valduga. Ele lembra que o crescimento da produção de suco de uva nos últimos anos aconteceu como uma adequação do setor às crises das safras.

O fruto não tinha qualidade suficiente para um bom vinho, mas tinha maturação adequada para o suco, uma alternativa de bom custo-benefício para o produtor. “A reconstrução vai acontecer.”