Metade do mundo está pegando fogo e a outra metade está debaixo d ‘água. Então, como é que, de repente, os compromissos socioambientais deixaram de ser importantes e as empresas estão voltando atrás?
A pergunta é do presidente da Natura, João Paulo Ferreira.
Parece um efeito dominó: desde a vitória de Donald Trump, uma série de empresas americanas (muitas multinacionais) têm retirado ou reduzido suas metas de emissão de gases de efeito estufa e programas de diversidade e inclusão.
Diante do fenômeno, Ferreira tem instado seus pares. “Seria bom ter um contraponto, as empresas que têm se posicionado no sentido de continuar progredindo.”
A Natura, então, reafirmou publicamente seus compromissos. Mas a pergunta segue: é o fim do ESG?
“É um momento de decantação”, diz o executivo, com seu tom de voz calmo característico. O CEO faz um breve histórico, lembrando que houve uma onda de adesão a compromissos socioambientais pelas companhias nos últimos anos.
“Mas isso não é trivial. É preciso investimentos, consistência, tecnologia, conhecimento. As empresas que fazem isso de forma consistente vão seguir adiante. As que aderiram por um certo modismo, mas sem, de fato, se preparar, estão deixando o barco.”
Ele é categórico no diagnóstico: desafios socioambientais têm que ser transformados em oportunidades de negócio, ou se tornam um pedágio.
“Políticas de ESG adotadas como forma de mitigação, remediação dos impactos negativos no negócio, das externalidades, viram um pedágio, um custo. E têm limites.”
Uma empresa com fins lucrativos precisa transformá-los em oportunidades de fazer melhores negócios, com inovação em produtos e processos, afirma. “Então não é mais um pedágio. É a forma de fazer negócio.”
E citou exemplos da companhia, como o modelo de negócios da Ekos, linhas de produtos com matérias-primas da Amazônia, e de distribuição via venda direta com consultoras. O batalhão de vendedoras (formado sobretudo por mulheres) é o principal canal de distribuição da empresa, com cerca de 90% das vendas.
Entre seus compromissos, a companhia tinha como meta pagar, até 2023, um salário digno (para além do salário mínimo, considera o custo de vida de um adulto na região em que vive) para todos os colaboradores e eliminar a diferença salarial não justificável de gênero e raça. Essas metas foram atingidas.
As consultoras não entram nessa meta, por não terem vínculo empregatício. No entanto, a empresa calcula a renda das consultoras para acompanhar a distância entre os ganhos com as vendas dos produtos da marca e a renda digna. Na última medição, feita em 2021, foi identificado que as consultoras mais sênior têm uma renda que ultrapassa aquela considerada digna, mas no caso das mais juniores existe uma distância grande a ser fechada.
Para as consultoras, a meta propriamente é aumentar em 10% o índice de desenvolvimento humano (IDH), indicador da empresa inspirado em um do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), da ONU, para mensurar as condições de vida e renda.
Compromissos
Os compromissos socioambientais da Natura estão organizados em três pilares: (1) enfrentar a crise climática e proteger a Amazônia; (2) defender os direitos humanos e (3) abraçar a circularidade e a regeneração.
Na primeira frente, a companhia tem como meta reduzir em 42% as emissões de gases de efeito estufa da cadeia de valor (escopo 3) e zerar as emissões nas instalações próprias (escopos 1 e 2) até 2030.
Para proteger a Amazônia e a biodiversidade, estão entre as metas preservar ou regenerar 3 milhões de hectares da floresta Amazônica e ter 100% das cadeias críticas de fornecimento (palma, soja, papel e álcool) livres de desmatamento.
No pilar de pessoas, a meta de ter 50% de mulheres nos cargos de liderança sênior foi atingida em 2020. Agora o esforço está em alcançar 25% de pessoas negras em cargos gerenciais em 2025 e 30% em 2030 – os negros são 56% da população brasileira, segundo o IBGE.
“Levou mais de uma década para chegar nisso [na meta de mulheres em cargos de liderança]. Não dá para levar mais uma década para garantir representação adequada em raça, identidade de gênero e de pessoas com deficiência”, diz Ferreira.
Ele exemplifica com o processo de aprendizado para contratar pessoas com deficiência para o centro de distribuição.
“A inspiração, há uns 15 anos, foi da Walgreens, a rede de farmácias dos EUA. Descobrimos que eles tinham um programa incrível de inclusão e fomos lá ver. Aprendemos que temos que identificar onde está essa população para poder nos aproximar, convidar, recrutar. Temos que capacitar e fazer os ajustes necessários no escopo do posto de trabalho. E capacitar toda a organização ao redor.”
Na terceira frente, de economia circular, o objetivo é que 100% das embalagens sejam reutilizáveis, refiláveis, recicláveis ou compostáveis até 2030. Até setembro de 2024, 89% da meta havia sido cumprida. Já o compromisso de ter 50% de todo o plástico das embalagens com conteúdo reciclado até 2030 está mais distante (atualmente são 18%), com uma lacuna grande entre as marcas da casa – Natura com 25% e Avon com 5%.