Riscos do clima: Boticário realoca caixa de R$ 200 milhões para Rio Grande do Sul

Recursos darão fôlego financeiro a fornecedores, franqueados e distribuidores afetados pelas enchentes

O Grupo Boticário captou R$ 1,15 bilhões em dívida ESG
A A
A A

Nas últimas semanas, com a calamidade ganhando proporções inimagináveis no Rio Grande do Sul, o Grupo Boticário precisou revirar suas contas para encontrar e realocar um caixa de R$ 200 milhões como resposta à tragédia, conta o CEO Fernando Modé. 

Embora o grupo, como outras empresas, tenha se envolvido em ações filantrópicas para auxiliar na emergência, o caso aqui é outro. 

“Esses não são recursos para doação. É um caixa que servirá para irrigar nossa operação no Rio Grande do Sul”, diz Modé. “Um dinheiro que será usado para alongar prazos de recebimento e antecipar pagamentos de parceiros”, completa.

Acionista da empresa e vice-presidente do conselho, Artur Grynbaum qualifica o episódio como um exemplo da materialização do risco de impacto financeiro da crise climática sobre os negócios. 

“Para fornecedores, antecipamos todos os pagamentos que estavam para vencer, porque eles vão precisar dos recursos”, descreve Grynbaum. De outro lado, ele cita revendedoras, franqueados das lojas e distribuidores, que ficaram sem condições de operar e também precisam de alívio financeiro. “Temos produtos que se perderam, dificilmente terão condições de uso porque podem estar contaminados, danificados.” Lojas e instalações também terão que ser reparadas ou reconstruídas.

Na avaliação do empresário, a catástrofe gaúcha será um marco para a gestão de risco das empresas no país. “A matriz de riscos de todo mundo será mais estudada, dada a paralisação que estamos vendo em setores.”

O grupo, que faturou R$ 30,8 bilhões no ano passado e reúne marcas como Eudora, Quem Disse Berenice, Vult e Truss, divulgou ontem, em evento em São Paulo, a atualização dos seus compromissos ESG para 2030 – exercício que se propôs a fazer a cada três anos para apertar o passo conforme avança na jornada. 

Uma das novidades introduzidas foi justamente a análise de riscos socioambientais que passou a ser feita no ano passado para estimar eventuais impactos financeiros no negócio. 

Isso é uma novidade implementada por poucas empresas no país – e no mundo. Por aqui, deve se tornar obrigatório reportar riscos e oportunidades ESG para as companhias brasileiras listadas em bolsa a partir de 2027 (exercício de 2026), uma vez que a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) brasileira foi pioneira em adotar o padrão global de reporte de sustentabilidade criado no ano passado.

“Até agora, a gente media o impacto ESG de dentro para fora. Ou seja, o que a gente faz versus o impacto que a gente causa fora. Agora também estamos olhando questões de fora que podem impactar a nossa operação”, diz Grynbaum. 

É o que se chama, no jargão do mundo da sustentabilidade corporativa, de dupla materialidade. Ou seja, analisar os principais impactos da atividade da empresa sobre o meio ambiente e a sociedade e, na mão inversa, fazer o mesmo com fatores socioambientais externos que podem afetar os negócios, resultando em perdas financeiras.

As mudanças climáticas foram apontadas como o segundo fator que mais oferece risco de impacto financeiro para o Boticário – atrás apenas de segurança de dados e privacidade.

Alguns dos aspectos ligados às mudanças climáticas identificados como riscos ao grupo são: cenário regulatório, alterações no ciclo de chuvas, aquecimento climático e perda de biodiversidade, escassez e conflito pelo uso de energia e água (aumento de custos por taxações e perda de receita por limitação de acesso a mercados, aumento no custo de aquisição de créditos de carbono, acesso a energia e/ou recursos hídricos), danos à infraestrutura e paralisações e multas e processos.

Economia circular e gestão de resíduos e gestão sustentável da cadeia de fornecimento também apareceram entre os principais riscos financeiros potenciais, ao lado de saúde, bem-estar e segurança.

Segundo Luis Meyer, diretor ESG, para chegar a esse resultado, a empresa fez uma pesquisa interna, e cada área apontou os fatores que mais poderiam afetar suas atividades. Os riscos foram identificados como baixos, médios ou altos, segundo intervalos de perdas financeiras potenciais, num horizonte de tempo de um a cinco anos.

“Foi o primeiro ano e temos muito a evoluir. Ainda há um baixo nível de conhecimento interno dos stakeholders sobre isso e no mercado são raras as empresas que reportam materialidade financeira de riscos ESG”, diz Meyer.

Compromissos 2030

Os primeiros compromissos ESG do Grupo Boticário foram criados em 2020 e anunciados em 2021. Na revisão, o número de compromissos foi cortado pela metade, em busca de mais assertividade. 

Os 15 originais agora são 8, distribuídos em sete temáticas: mudanças climáticas; resíduos; água; biodiversidade; diversidade e inclusão; desenvolvimento social; e fornecimento sustentável. Dentro dos 8 compromissos, existem 30 metas objetivas.

“Algumas das coisas que estávamos fazendo não nos levariam ao melhor resultado”, diz Grynbaum, citando como exemplo a meta relacionada a resíduos de embalagens pós-consumo. 

A meta anterior era ampla e genérica: ‘Mapear e solucionar 150% de todo o resíduo sólido gerado pela cadeia’. Retirar mais resíduos do que os colocados no meio ambiente causava boa impressão pelo número, diz Grynbaum, mas na prática o objetivo se mostrou problemático.

“Quando fomos para a execução, vimos que não era a melhor métrica. Porque quando trabalho apenas o volume não consigo saber se estou sendo eficiente”, diz ele. 

Agora, o grupo definiu três metas específicas para 2030 (todas em relação a 2022): reduzir em 15% o volume de resíduo gerados por unidade de produto vendida; recolher e destinar para reciclagem ao menos 45% de todo o resíduo de embalagem gerado no ano; e utilizar ao menos 30% de material reciclado nas embalagens.

Emissões de CO2

Na frente das emissões de gases de efeito-estufa, em 2023 a empresa se comprometeu com a iniciativa Science Based Targets (SBTi), considerado o padrão ouro para os planos net zero das empresas. As metas de descarbonização de curto prazo serão submetidas à iniciativa este ano. As de longo prazo (para chegar ao net zero em 2050) devem ser enviadas para avaliação do SBTi até junho de 2025.

Antes a companhia não tinha metas específicas para mitigação das emissões de gases das suas operações, algo que passou a existir na revisão feita no ano passado. O grupo estabeleceu como objetivo para 2030 cortar em 42% as emissões de escopo 1 e 2 (diretas e relativas à energia comprada, respectivamente) e reduzir em 17% as emissões de escopo 3, as chamadas emissões indiretas, que acontecem na cadeia de valor (fornecedores e consumidores) – nos dois casos, o ano-base é 2022.

Mas as duas metas já nasceram no cheque-especial, por assim dizer, por conta do crescimento da empresa.

“Nos preparamos para chegar em 2023 com as novas metas e a companhia anunciou, em janeiro de 2023, a compra da Truss, que veio com fábrica, com centro de distribuição e toda uma cadeia de fornecimento”, diz Luis Meyer.

O resultado é que as emissões de escopo 1 e 2 cresceram 8% no ano, enquanto as de escopo 3 avançaram 29%.

“Não vamos atrasar o compromisso. Temos condições de investir e reverter isso”, diz o diretor. Os escopos 1 e 2, diz, não preocupam tanto. O escopo 3, sim, é o maior desafio, porque representa 98% das emissões do grupo. 

“É algo normal para uma empresa de varejo, com 4 mil pontos de venda no Brasil. O que precisamos é acelerar iniciativas, principalmente as que já temos dentro de casa. Um exemplo é a eletrificação da frota que faz o last mile da entrega de produtos para os franqueados.”