Quando a gigante de bens de consumo Unilever comprou a brasileira Mãe Terra, em outubro de 2017, os planos eram grandiosos.
A Mãe Terra havia sido disputada por outros players globais como Nestlé e Pepsico, e a transação cristalizava o interesse das grandes multinacionais de alimentos processados por marcas independentes conectadas às exigências crescentes dos consumidores por produtos saudáveis .
Uma das líderes em alimentos naturais e orgânicos embalados no país, a marca tinha cerca de 120 itens – de granolas e ingredientes a biscoitos e snacks –, faturava mais de R$ 100 milhões e era forte em São Paulo e no Rio de Janeiro.
A Unilever anunciou a transação como uma oportunidade de democratizar o acesso à comida saudável.
Queria usar sua parruda rede de distribuição para levar os produtos da marca a todas as regiões do país e dobrar as vendas no curto prazo. Na sequência, a Mãe Terra seria transformada numa plataforma da fabricante da maionese Hellmann’s e do caldo Knorr para crescer em alimentos saudáveis globalmente.
Passados quase cinco anos do fechamento do negócio, o ponto de chegada é bem distinto do planejado. No mercado interno o faturamento dobrou apenas recentemente. A sonhada internacionalização não aconteceu.
Por trás desse resultado, tropeços e aprendizados ilustram os desafios de uma grande corporação cujo modelo se baseia em escala para integrar um negócio inovador, ágil e cheio de propósito – com uso de ingredientes da biodiversidade brasileira e uma cadeia de fornecimento formada em grande parte por pequenos agricultores familiares.
“Todos as aquisições têm erros e acertos”, diz Rodrigo Visentini, gerente geral da divisão de nutrition da Unilever no Brasil.
Visentini e Thais Hagge, que acaba de assumir a área de beauty para Brasil e América Latina, mas que até recentemente respondia pela marca Mãe Terra, conversaram com o Reset para compartilhar as dores e lições do processo.
“A Unilever viu na Mãe Terra a oportunidade de aprender dentro desse universo de alimentação saudável e trazer mais pessoas. Os princípios que nortearam a aquisição se mantêm e estão ainda maiores. Mas existem barreiras para isso, seja de escala produtiva, de encontrar o fornecimento adequado e até de conhecimento do consumidor. Os aprendizados vêm de vários lados”, diz Hagge.
Na visão de ambos, dois obstáculos centrais surpreenderam a empresa no processo de integração: a distribuição dos produtos nacionalmente e o desenvolvimento do fornecimento de insumos orgânicos em escala.
Falhas na distribuição
Antes de ser comprada, a Mãe Terra operava com uma rede de distribuição terceirizada que lhe dava boa penetração no pequeno e médio varejo.
Depois da aquisição, a Unilever passou a plugar a marca na sua estrutura, supondo que isso naturalmente traria eficiência e escala. Na distribuição, isso significou passar a usar a mesma rede que colocava o sabão Omo em supermercados de Norte a Sul do país – uma máquina acostumada a grandes volumes e menor sortimento de itens.
“A ideia inicial era: onde chegava Unilever, vamos levar Mãe Terra”, recorda Hagge.
Se o propósito era nobre, o resultado decepcionou, porque as vendas não vieram como a empresa esperava.
“Não adianta colocar o produto em todos os pontos de venda. Ele não vende na mesma velocidade”, diz Hagge. “O produto não gira da mesma maneira em todos os canais, em todas as regiões do Brasil, por questões de conhecimento de marca, de acesso, questões econômicas. Esse foi um dos grandes erros que a gente cometeu na época”, completa Visentini.
Alimentos, naturalmente, já têm um prazo de validade menor que produtos de limpeza e cuidados pessoais, os carros-chefes da Unilever. Mas, além disso, produtos com ingredientes naturais, sem conservantes e com embalagens desenhadas para serem recicladas, como é o caso de Mãe Terra, têm um ‘shelf life’ ainda mais curto.
Quanto mais camadas de laminado na embalagem, mais o produto dura. Mas a Mãe Terra evita essas camadas, justamente para permitir a reciclagem. “É diferente de uma cadeia de sabão em pó, onde você tem outra lógica”, diz Hagge.
Resultado: inicialmente houve grandes encalhes, o que acarretou perdas para a Unilever – os produtos só não foram para o lixo graças a programas de doação de alimentos próximos à data de validade implementados pela multinacional.
“Foram aprendizados muito importantes, que têm a ver com a característica do produto, com a proposta de Mãe Terra. Não posso colocar um ingrediente tal pra estender o prazo de validade, não faz sentido para o que a marca se propõe”, diz Hagge.
Segundo Visentini, levou um ano até que esse tipo de coisa fosse calibrado. E também houve acertos, com mais volumes vendidos nos mercados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, por exemplo. “Grandes cadeias de supermercados que não tinham muita Mãe Terra hoje em dia vendem muito mais. Então a gente dosou melhor isso e a marca vem crescendo de forma mais constante.”
O maior exemplo, diz, é que o volume vendido de granolas, o carro-chefe da marca, triplicou desde a aquisição.
Segundo relato de fontes do varejo, aos poucos a Unilever também tem buscado recompor a rede de distribuição da marca, recuperando um terreno que nos últimos anos foi ocupado por concorrentes.
Paralelamente às questões de distribuição, também teriam havido tropeços na produção inicialmente. As mesmas fontes do varejo relatam uma grande ruptura de fornecimento em determinado ponto, que alguns atribuem a dificuldades na migração da produção da fábrica da Mãe Terra, em Osasco, na Grande São Paulo, para a planta da Unilever em Pouso Alegre (MG). Na época, boa parte dos 300 funcionários da marca, aqueles ligados à fábrica, foram desligados.
Cadeia de fornecimento
Conforme tentou aumentar volumes de produtos que já existiam ou mesmo lançar novos, a Unilever também começou a se deparar com a complicação de garantir uma outra ordem de grandeza no fornecimento de ingredientes orgânicos.
Uma das apostas era ampliar a venda dos biscoitos, mas a disponibilidade de trigo orgânico se tornou uma barreira importante a ser superada. Visentini conta que foi preciso fazer um trabalho forte junto a produtores do Sul do país, onde o trigo compete com a soja, considerada por eles uma venda certa e lucrativa.
“Tivemos que mostrar que o trigo orgânico traz valor agregado, que nossa demanda era de médio e longo prazo. Trabalhamos em parceria, ajudamos com o fluxo de caixa, adiantando dinheiro aos produtores e fazendo contratos mais longos.”
Quando a empresa resolveu lançar uma batata chips orgânica e assada (em vez de frita) não foi diferente.
Hagge conta que, sob a coordenação de um agrônomo que integra o time de compras da marca, foi feito um trabalho com pequenos produtores de batatas para que eles migrassem para o cultivo orgânico. De novo dando dinheiro na frente para o investimento e garantindo a compra da safra por um prazo maior do que o de praxe.
“São as dificuldades de escalar um produto orgânico. Mas é um produto no qual acreditamos muito e hoje ele está na prateleira”, completa Visentini.
Recentemente, com a decisão de tornar a marca vegana, houve desafios para substituir ingredientes como o mel que adoçava algumas das granolas. “Fomos atrás de um melado que tinha de ser de uma cadeia sustentável”, diz Hagge.
Com a palavra, o ex-CEO
Alexandre Borges era o controlador e CEO da Mãe Terra antes da venda. Na ocasião, se mostrou animado com a perspectiva de ampliar em muitas vezes a escala dos produtos da marca e também de levá-la para fora do país.
Pelo acordo fechado com a multinacional, deveria permanecer à frente do negócio durante os três primeiros anos, com parte do pagamento na forma de um earn-out. Acabou ficando três anos e meio e saiu no primeiro semestre do ano passado.
Em conversa com o Reset, Borges reconhece as dificuldades que impediram que o projeto inicial fosse concretizado. Mas prefere focar no que deu certo.
“O saldo é positivo”, diz ele, que segue como conselheiro consultivo da marca. (Hoje o empreendedor está em alguns conselhos de administração, incluindo o de duas marcas em que também é um investidor minoritário, a Natural One, de sucos, e a Dengo, de chocolates.)
Embora a Unilever não fosse forte em alimentos, o que contava pontos contra na hora de decidir para quem vender a companhia, Borges não escondeu que deu prioridade ao ‘fit’ cultural, apostando no apreço da Unilever pela sustentabilidade socioambiental nos negócios. Na época, a empresa ainda era liderada por Paul Polman, um dos expoentes mundiais na defesa do capitalismo de stakeholder.
Nesse sentido, diz, tudo funcionou como o esperado. “A Unilever foi respeitosa com os princípios e a cultura da empresa.”
Por exigência de Borges, o contrato previa que os sete princípios que norteavam a marca fossem mantidos, entre eles a prioridade dada à agricultura familiar e também aos produtos orgânicos. “Hoje, 48% dos fornecedores são pequenos produtores e dois terços das vendas são de produtos orgânicos. Não teve atalho para ampliar escala”, resume. São percentuais quase idênticos aos que existiam antes.
Tudo isso, diz, são aspectos que têm um custo e encarecem o produto, mas que são apostas de longo prazo.
Desde o princípio, diz Hagge, a Unilever optou por manter todos os fornecedores da Mãe Terra, que não eram os mesmos do grupo, o que representou grande investimento em certificações e selos de qualidade para adequá-los aos padrões exigidos de todos os fornecedores. Hoje são cerca de 80 fornecedores (ante cerca de 100 quando a marca foi comprada).
Também por contrato, a marca tem uma sede própria e separada da Unilever, que foi recém-inaugurada depois de atrasos por conta da pandemia. Batizada de Casa Mãe Terra, fica no bairro paulistano da Vila Madalena e concentra as operações de marketing, trade, pesquisa e desenvolvimento de produtos e desenvolvimento da cadeia de suprimentos.
Agora à frente da marca, Rodrigo Visentini diz acreditar num crescimento mais consistente daqui em diante. “Agora é muito mais uma questão de casar a oferta e a demanda. Fazer o consumidor comprar Mãe Terra é um dos grandes desafios.”
A marca tem aproximadamente 100 itens, ainda bem sortida mas mais enxuta que os cerca de 120 de cinco anos atrás; e o mix de produtos teve algumas modificações, com um pouco mais de ênfase em alimentos prontos para consumo e menos em ingredientes, que, segundo a empresa, seguem sendo uma categoria importante.
Os planos de internacionalização não foram abandonados, mas estão ‘on hold’. “Temos que fazer a marca ainda maior no Brasil antes de pensar num plano internacional.”