EMPRESAS

Nova Raposo ameaça cinturão verde de São Paulo

EcoRodovias, que desembolsou R$ 2,2 bi pela concessão, diz que estuda traçado e promete atenuar impacto em áreas de proteção ambiental

Nova Raposo ameaça cinturão verde de São Paulo

Após desembolsar R$ 2,2 bilhões para levar a concessão da Nova Raposo e ver suas ações se valorizarem com as perspectivas abertas pelo novo negócio, a EcoRodovias está diante de um obstáculo. Grupos ambientalistas estão se articulando para tentar impedir uma das obras previstas pelo empreendimento.

O projeto é considerado essencial pelo governo do Estado de São Paulo para aliviar o estrangulamento do sistema viário que conecta os municípios da região metropolitana da capital, mas a nova estrada pode colocar em risco o cinturão verde que regula o clima da metrópole e garante seu abastecimento de água. 

Com quase 18 quilômetros de extensão e quatro pistas, além do canteiro central, em traçado proposto pelo governo paulista, a nova via cruzaria dois municípios, Cotia e Embu das Artes, duplicando uma rodovia estadual e sete estradas municipais, algumas sem pavimentação hoje.

De acordo com o projeto preliminar, o empreendimento atravessaria uma área de proteção ambiental municipal, a APA Embu Verde, e se aproximaria das bordas da Reserva Florestal de Morro Grande, propriedade da Sabesp, a companhia estadual de água e saneamento básico. 

Ninguém questiona a necessidade de fazer algo para desafogar o trânsito no entorno da cidade de São Paulo, mas as dúvidas em torno do impacto do projeto são uma amostra dos desafios que governos e empresas precisam enfrentar para modernizar a infraestrutura do país sem causar mais degradação ambiental. 

A EcoRodovias diz que ainda está estudando o traçado indicado pelo governo e submeterá uma proposta definitiva a consulta pública após a conclusão dos levantamentos. “A ampliação será executada em conformidade com as diretrizes dos órgãos públicos competentes e a legislação, inclusive ambiental, e com base em critérios técnicos, sempre com o compromisso de minimizar impactos socioambientais”, afirmou a empresa, por meio de nota.

Os grupos ambientalistas, no entanto, temem que os riscos acabem sendo desconsiderados. “Fomos surpreendidos pelo projeto, que não parece ter sido bem avaliado pelo governo antes do leilão da concessão”, diz Rodolfo Almeida, conselheiro da Sociedade Ecológica Amigos de Embu.

Os ativistas já realizaram duas audiências públicas para discutir o problema e contrataram um escritório de advocacia para avaliar ações no campo jurídico. Um vídeo produzido pelos grupos, com imagens aéreas de um pedaço intocado da floresta na região, alcançou 240 mil visualizações no Instagram.

Queda e alta de ações

O contrato da EcoRodovias envolve a operação de 92 quilômetros de estradas, incluindo trechos das rodovias Castello Branco e Raposo Tavares, que ganharão faixas adicionais e novos viadutos e acessos. O projeto prevê investimento de cerca de R$ 8 bilhões ao longo dos 30 anos de concessão, rebatizada como Ecovias Raposo Castello após a assinatura do contrato, em março. 

As ações da companhia despencaram após o leilão da concessão, em novembro. Ela se endividou muito nos últimos anos e surgiram dúvidas sobre sua capacidade de levantar mais recursos para financiar os pesados investimentos com os quais se comprometeu nas várias concessões rodoviárias que opera. Além da Ecovias Raposo Castello, ela administra outras 11 concessões que somam 4,7 mil quilômetros de extensão, em oito estados.

O endividamento da empresa continuou aumentando neste ano, mas suas ações se recuperaram do tombo após bem sucedidas emissões de debêntures no primeiro trimestre. Elas garantiram recursos para quitar a outorga da nova concessão e financiar investimentos programados para este ano.

Controlada pelo grupo italiano ASTM, a EcoRodovias aposta na redução de custos previstos no projeto preliminar do governo para cumprir o compromisso. Na época do leilão, a Agência Reguladora de Serviços de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp) estimou em R$ 287 milhões o custo das obras previstas na ligação entre Cotia e Embu das Artes, sem incluir despesas com desapropriações e eventuais compensações ambientais.

Mas a concessionária acha prematuro especular sobre custos agora, porque o traçado proposto para a rodovia ainda está sendo revisto e os estudos de impacto ambiental não foram contratados. O cronograma da concessão prevê a entrega da obra em 2032.

O projeto preliminar apresentado pelo governo antes do leilão da concessão inclui também a instalação de três pórticos para cobrança automática de pedágio dos usuários da nova estrada.

Congestionamentos e Mata Atlântica 

A região que será afetada se a estrada sair do papel é marcada historicamente pela ocupação desordenada. Condomínios residenciais, loteamentos clandestinos e até grandes empresas dividem o território com árvores centenárias e outros vestígios de Mata Atlântica.

A APA Embu Verde foi criada por lei municipal em 2008. Ela tem 16 quilômetros quadrados e representa um quinto da área total do município, que tem 251 mil habitantes. O desenvolvimento de atividades econômicas é permitido na área, se elas forem exploradas de forma sustentável.

Conforme um levantamento divulgado pela prefeitura da cidade há dois anos, fragmentos da floresta original cobriam então o equivalente a 54% da área protegida. Pastagens e vegetação rasteira eram encontradas em outros 32%. Os restantes 14% correspondiam a áreas urbanas.

Estudos realizados em 2011 com apoio do governo estadual encontraram na região 19 espécies de mamíferos, incluindo duas ameaçadas de extinção, a onça-parda e a jaguatirica, além de 303 espécies vegetais nativas nos fragmentos remanescentes da floresta original. 

Em 2012, um novo Plano Diretor aprovado pela Câmara Municipal de Embu das Artes permitiu a criação de um corredor industrial dentro da área protegida, abrindo caminho para a instalação de empreendimentos de grande porte, incluindo galpões de logística e indústrias alimentícias.

No ano seguinte, empresários locais começaram a desenvolver projetos para melhorar a conexão de Cotia e Embu das Artes com as rodovias estaduais no entorno e os submeteram ao governo, obtendo o apoio político necessário para fazer a ideia avançar agora, com a nova concessão.

“A migração para cidades vizinhas à capital acelerou o processo de conurbação dessa região nos últimos anos, agravando problemas como o tráfego intenso nas rodovias”, diz o empresário Caio Portugal, sócio da GP Desenvolvimento Urbano em Cotia. “É preciso encontrar soluções.”

Moradores da região que se deslocam diariamente para a capital sofrem com os congestionamentos na Castello Branco e na Raposo Tavares. A nova estrada permitiria desviar parte dos caminhões, conectando as duas rodovias à Régis Bittencourt, que liga São Paulo à região Sul.

Portugal reconhece os riscos criados pela obra, mas diz que é preciso esperar a conclusão dos estudos da concessionária para avaliar o impacto do projeto. “A ocupação irregular da região ocorre há muito tempo e haverá novas pressões, mas ainda é cedo para saber ao certo”, diz.

Cálculos dos ambientalistas com base no traçado preliminar proposto para a estrada e dados da plataforma DataGEO, do governo estadual, apontam 17 quilômetros quadrados de floresta nativa e 94 nascentes de rios em risco em faixas próximas das duas margens da futura rodovia. 

Eles temem que o avanço da ocupação alimente pressões sobre a Reserva Florestal de Morro Grande, em Cotia. Com 109 quilômetros quadrados, ela é um dos principais maciços florestais preservados no entorno de São Paulo, depois dos parques da Serra do Mar e da Cantareira.

“É uma área estratégica para o enfrentamento das mudanças climáticas e a qualidade de vida dos habitantes da metrópole”, afirma o biólogo Cesar Pegoraro, da Fundação SOS Mata Atlântica. “Deveríamos respeitar o que está lá, evitar novas perdas e restituir o que fosse possível.”

A área da reserva foi desapropriada pelo governo paulista no início do século 20, para proteger mananciais e garantir o abastecimento de água em São Paulo e nas cidades vizinhas. Duas represas foram construídas na propriedade e continuam sendo operadas pela Sabesp.

A companhia, privatizada no ano passado, afirmou por meio de nota que a reserva cumpre papel fundamental no abastecimento de 350 mil pessoas na região de Cotia. A Sabesp diz que tem feito rondas frequentes para evitar desmatamento, queimadas e invasões da área.

Nos últimos anos, o governo avaliou projetos que propunham transformar a reserva num parque estadual, criar um pólo de turismo sustentável no local e demarcar certas áreas como reservas particulares, com garantia de proteção perpétua. Nenhuma ideia avançou. 

Mais da metade do município de Embu das Artes coincide com áreas de proteção a mananciais, que incluem as nascentes do rio Embu-Mirim, um dos principais contribuintes da represa Guarapiranga. Ele abastece cerca de 4 milhões de habitantes da região metropolitana.

Nada disso foi debatido durante as consultas públicas conduzidas pelo governo estadual antes do leilão da nova concessão. A Artesp realizou apenas duas audiências públicas no primeiro semestre do ano passado, uma em São Paulo e outra em Vargem Grande Paulista. 

Nas apresentações feitas sobre o projeto, os representantes do governo descreveram as obras previstas na ligação entre Cotia e Embu das Artes como “duplicação dos trechos rurais com adequações geométricas”, sem indicação das áreas de proteção ambiental no entorno.

Nas duas audiências, a diretora financeira da Companhia Paulista de Parcerias, Raquel França Carneiro, disse que o objetivo da obra é criar uma alternativa para aliviar o tráfego no trecho Oeste do Rodoanel de São Paulo, inaugurado em 2002 e sempre congestionado.

Segundo relatório publicado pela Artesp após as consultas públicas, o traçado proposto para a futura rodovia foi alterado para “evitar obras em trechos urbanos”, após estudos de caráter preliminar contratados pela International Finance Corporation, instituição ligada ao Banco Mundial que fez o projeto da Nova Raposo para o governo paulista.

O relatório recomenda atenção especial para a região de Embu das Artes. A consultoria Arcadis, responsável pelos estudos, sugeriu a revisão do projeto para evitar a perda de 1 quilômetro quadrado de habitats classificados como críticos, de alta sensibilidade.

Questionada pelo Reset sobre os riscos do empreendimento, a Artesp não quis se manifestar, indicando a Secretaria de Parcerias em Investimentos do governo estadual para mais esclarecimentos. A secretaria não respondeu aos questionamentos apresentados pelo Reset.

De acordo com o contrato da concessão, os estudos de impacto ambiental aprofundados que deverão ser feitos antes da realização da obra fazem parte das obrigações da EcoRodovias como concessionária. Caberá à Artesp fiscalizar a empresa para que isso seja cumprido.