
Há cinco meses no cargo, Paul Atkins, presidente da SEC, a reguladora do mercado de capitais americano, está seguindo à risca a agenda de desregulamentação republicana e tomando decisões que, na visão de especialistas, são mais pró empresas do que investidores.
São medidas que podem diminuir o grau de transparência e os direitos dos acionistas, características que transformaram o mercado de capitais dos EUA no maior do mundo.
John Coffee, renomado professor da Faculdade de Direito da Universidade Columbia, mostrou preocupação em entrevista ao Financial Times: “Os EUA são conhecidos pelo menor custo de capital e isso se deve ao elevado nível de transparência e à capacidade dos acionistas de recorrerem aos tribunais.”
O xerife do mercado de capitais nos EUA fez mudanças significativas sobre a instância de arbitragem em disputas entre acionistas e a administração das empresas; pode rever a obrigatoriedade de divulgação de balanços trimestrais; e autorizou uma empresa a criar um sistema para barrar acionistas ativistas – que pode se tornar moda por lá.
Além dessas medidas, a SEC vem nos últimos meses mudando totalmente em relação ao perfil democrata da liderança anterior, considerando mais fiscalizador e focado em aplicar a lei (enforcement). A reguladora abandonou investigações de casos envolvendo plataformas de criptomoedas – um negócio encampado pelo presidente Donald Trump – e está deixando de lado regras para divulgação de impactos climáticos nas demonstrações financeiras.
“A SEC é muito mais politizada do que é a CVM, até o momento, pelo menos. Historicamente, muda o presidente, muda muito a orientação. Se for um democrata, vai ter agenda de mais intervenção no mercado. Se for um republicano, vai tentar deixar o mercado mais livre”, afirma um advogado especializado em mercado de capitais, que pediu para não ser identificado.
Para uma fonte próxima à CVM, se o governo mudar no Brasil e colocarem no comando profissionais com perfil similar aos da administração de Jair Bolsonaro, muitas dessas ideias podem ganhar corpo aqui. “A diferença é que a Lei das S.A. é bem mais restritiva. Aqui temos proteções mais ostensivas aos acionistas minoritários, o voto é entendido de maneira mais cuidadosa. Mas não é impossível dar interpretações mais heterodoxas à lei ou alterá-la”, diz.
Arbitragem
No dia 17 de setembro, a SEC informou que não vai mais barrar IPOs de companhias cujos estatutos estabelecerem que disputas com acionistas relacionadas a fraudes ou falhas na divulgação de informações serão resolvidas via arbitragem privada, em vez da Justiça.
“Não é papel da SEC definir se um método específico escolhido por uma empresa para decidir disputas com seus acionistas é bom ou ruim”, disse o presidente do órgão regulador americano – Atkins é um republicano que foi funcionário da SEC e depois de sair de lá, em 2009, fundou a Patomak Global Partners, especializada na prestação de serviços de conformidade regulatória.
Essa “regra” da SEC de barrar empresas com cláusulas de arbitragem nos estatutos não está escrita em lugar nenhum, mas é um procedimento costumeiramente adotado pelo regulador. A nova orientação parece um tiro certo para combater as class actions – ações judiciais coletivas, previstas no direito americano, que reúnem um grupo de pessoas, no caso aqui acionistas, prejudicado pelo mesmo fato e que pleiteia indenização em um único processo.
“Existe uma indústria de judicialização nos EUA, não só nesses casos de investidores, mas também em casos de direito do consumidor, por exemplo”, afirma Viviane Muller Prado, professora da FGV Direito SP. “Esse custo sempre foi grande preocupação das empresas por lá.”
Os críticos da liberação da arbitragem – inicialmente só para IPOs, mas os especialistas já dão como certo que as empresas listadas vão pressionar para conseguir a mesma coisa – argumentam que isso vai aumentar os custos do investidor isoladamente e diminuir a transparência, uma vez que as regras são definidas na arbitragem e os processos não ficam públicos, diminuindo o efeito dissuasor.
Durante a discussão do assunto, Caroline Crenshaw, a única democrata remanescente na SEC, criticou a nova política, segundo a Reuters, dizendo que ela “abrirá as comportas” à arbitragem obrigatória, negando a muitos acionistas os seus direitos e permitindo que as empresas “mantenham más-condutas nas sombras”: “Se os investidores prejudicados não conseguirem unir-se numa ação coletiva, partilhando custos legais, muitos simplesmente não irão processar.”
No Brasil, diante da morosidade da Justiça, a arbitragem sempre foi o caminho nesses casos, vendida como mais rápida e especializada – está prevista, inclusive, na criação do Novo Mercado, principal segmento de governança corporativa da B3. A questão da falta de publicidade sempre foi criticada, e mais recentemente, houve decisões arbitrais questionadas na Justiça.
A class action americana não existe no Brasil. Houve tentativas de fazer algo parecido, como na fraude no IRB e na Petrobras, pós Lava-Jato, mas que acabaram se transformando em arbitragens coletivas. Diante da falta de previsão sobre esses processos, desde 2023, circula no Congresso o projeto de lei 2.925/23, que tenta de alguma forma regulamentar esse tipo de procedimento no país.
O PL retira a possibilidade de responsabilização das companhias, focando apenas nos administradores, diz Prado, da FGV. “Isso tira o efeito de uma ação como essas porque o diretor ou o conselheiro não terá a capacidade econômica para arcar com as indenizações”, disse. Quem defende que o responsabilizado seja a pessoa que praticou a fraude ou falha informacional, argumenta que “patrimonialmente falando”, do contrário, a empresa vai pagar o acionista com o dinheiro do próprio acionista.
Menos balanços
Na véspera da decisão sobre arbitragens, a SEC, atendendo a um pedido público de Trump, disse que vai priorizar a discussão sobre a mudança da obrigatoriedade de divulgação de demonstrações financeiras de trimestral para semestral. Isso serviria para reduzir custos e o tempo gastos pela administração na preparação e apresentação das informações, além de contribuir para desenvolver uma visão de mais longo prazo dos negócios.
A regra de balanços trimestrais foi adotada pela SEC em 1970, com o objetivo de ampliar o acesso e a comparabilidade das informações financeiras pelos investidores.
A Europa já adotou a periodicidade semestral, há mais de dez anos. Mas muitas companhias, por serem listadas em bolsas americanas, seguem apresentando seus números trimestralmente. Do ponto de vista dos investidores, há o temor de que isso leve a menor transparência e à possibilidade de vazamento de informações.
Para a professora da FGV, outra questão que se levanta é o impacto que o espaçamento da divulgação pode ter na precificação das ações pelo mercado.
O advogado especializado em mercado de capitais reforça que a empresa não vai passar seis meses sem dar informações. “A obrigação de divulgar fatos relevantes, por exemplo, continua. Isso pode reduzir barreiras, fica mais barato”, diz.
No Brasil, a CVM anunciou em julho o Fácil (Facilitação do Acesso a Capital e de Incentivos a Listagens), segmento para companhias de menor porte com regras simplificadas e proporcionais. Uma das facilidades é justamente divulgar balanços semestralmente. Nunca houve uma discussão para adotar essa medida para todas as companhias. A Lei das Sociedades por Ações (SA) fala em divulgação anual e a regra trimestral é da CVM.
Essas medidas não são exatamente novidade nos EUA – Trump já havia tentado passar ambas em seu primeiro mandato.
Contra ativismo
A terceira decisão recente da SEC, do dia 15 de setembro, dificilmente chegaria por aqui, na visão do advogado especializado em mercado de capitais. “A CVM jamais deixaria”, disse.
A SEC autorizou a ExxonMobil a criar um sistema para engajar seus acionistas de varejo nas assembleias – hoje esse perfil representa 40% de sua base acionária e três quartos deles nunca comparecem às reuniões.
A Exxon poderá acessar esses investidores e pedir a eles que ativem uma espécie de voto permanente favorável a qualquer proposta apresentada pela administração. Se esses acionistas em algum momento discordarem de alguma proposta, eles terão de se manifestar contra na votação. Na prática, o voto de quem nunca vota estará em modo default a favor da administração. Todo ano o investidor será relembrado de renovar esse opt in.
“Esta é sem dúvidas uma forma de proteger a administração contra a atuação de acionistas ativistas”, disse o advogado. Nos EUA, a maioria das empresas é corporations, sem controlador definido, e a administração, principalmente os conselhos, têm muito poder sobre elas.
“A Exxon está invertendo a dinâmica. Hoje, ativistas podem ter mais facilidade porque as pessoas físicas não votam e isso diminui os quóruns, aí a administração tem que ir atrás dessa base para chamá-los a votar. Agora, se a administração convencê-los previamente a votar a seu favor, o ativista é que vai ter de sair atrás para convencê-los a votar contra. Imagine o custo e o tempo que isso vai levar.”
A Exxon disse que queria fechar essa lacuna para que grupos ativistas não conseguissem explorá-la para “promover objetivos políticos em detrimento do valor para os acionistas”. Há 4 anos, o hedge fund de impacto Engine Nº1, depois de uma batalha por votos em que pedia mais compromisso da petroleira com questões climáticas, conseguiu três cadeiras no conselho da empresa.
Ryan Albert, um investidor internacional, diz que as regras estão retirando proteção dos investidores. “Eles estão dando mais poder aos executivos, em vez dos acionistas, que são os verdadeiros donos das companhias. Sem dúvidas isto pode complicar o papel dos fundos que querem influenciar empresas e proteger seus direitos”, disse.
Há expectativa de que outras empresas com muitos acionistas pessoa física adotem o mesmo sistema. “Vamos ver se as empresas que adotarem esta regra terão menos participação dos investidores que valorizam o padrão da governança corporativa atual.”