OPINIÃO

Stewardship, um palavrão essencial para o desenvolvimento sustentável

Embates entre acionistas, com dificuldades para os minoritários, comprovam a necessidade de uma efetiva prática no país, escreve Geraldo Affonso Ferreira

Stewardship, um palavrão essencial para o desenvolvimento sustentável
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Ainda pouco conhecido e praticado no Brasil, stewardship é o dever fiduciário dos gestores de ativos financeiros de zelar pelos investimentos de seus clientes. O conceito surgiu no Reino Unido, que, em 2010, lançou seu primeiro código desta prática, apresentando como objetivo “melhorar a qualidade do engajamento entre investidores institucionais e empresas a fim de proporcionar melhores retornos de longo prazo para os acionistas e o exercício eficiente das responsabilidades de governança”.  

Dez anos depois, em 2020, a segunda edição do UK Stewardship Code, definiu esse conceito como “a alocação responsável, gestão e supervisão de capital para criar e preservar valor de longo prazo para clientes e beneficiários finais, levando a benefícios sustentáveis para a economia, o meio ambiente e a sociedade”. 

No ano seguinte (2021), nosso país também lançou o Código Brasileiro de Stewardship, numa parceria entre a CFA Society Brazil e a Associação dos Investidores no Mercado de Capitais (Amec). Nessa publicação, o stewardship é definido como “o cuidado na gestão e no monitoramento dos valores mobiliários detidos por beneficiários finais, os clientes”. 

Segundo a CFA Society Brazil, “o exercício de stewardship e a adesão a códigos locais são considerados melhores práticas em escala global”. O stewardship é essencial para a confiança dos investidores na gestão das empresas. E a confiança é base para o fortalecimento do mercado de ativos e para o desenvolvimento sustentável. 

No entanto, o Brasil ainda está longe de um mercado acionário forte e confiável – e aqui não estamos falando dos riscos inerentes aos investimentos em renda variável, mas sim de regras claras e que sejam efetivamente cumpridas, garantindo o mínimo de segurança ao investidor.

Ocorre que, no Brasil, ainda não contamos com um law enforcement eficaz. Exemplos recentes de embates entre acionistas, com grandes dificuldades para os minoritários, comprovam a fragilidade e a necessidade de uma efetiva prática do stewardship no país. 

Podemos citar casos notórios como os da Americanas, Gafisa, Petrobras e Vale, onde a falta de stewardship e abusos de controladores permitiram a diluição do poder dos minoritários.

O órgão regulador do mercado de capitais brasileiro – a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) – não dispõe dos recursos humanos, financeiros e de apoio do estado necessários para uma fiscalização que verdadeiramente obrigue o cumprimento de boas práticas das empresas junto aos seus investidores.

O sucateamento orçamentário da CVM já vem de vários governos e agora chegou a tal ponto que, em fevereiro, os servidores do órgão realizaram uma operação padrão, com apoio do alto escalão do regulador, em protesto por condições de trabalho à altura da responsabilidade da casa.

Simultaneamente, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, pediu apoio da Febraban (Federação Brasileira de Bancos) para aprovação de alguns projetos que tramitam no Congresso Nacional com o objetivo de melhorar a governança de empresas de capital aberto. Um deles ampliaria o poder da CVM e possibilitaria que acionistas minoritários entrem com ação coletiva contra os administradores em caso de fraudes contábeis. 

Enquanto isso não é uma realidade no Brasil, o melhor meio para manter a confiança dos investidores nas empresas locais ainda será estimulando e praticando voluntariamente a boa governança corporativa. 

Porém, como as realidades e contextos de cada companhia diferem, não existe uma receita pronta ou um conjunto de normas a ser seguido por todas. A boa governança é mais que isso; é uma forma de gestão ética, íntegra e responsável que deve permear toda a cultura das empresas.

Foi por essa razão que o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) promoveu algumas mudanças na sua 6ª edição do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa, publicada no ano passado. Fundado em 1995, o IBGC sentiu a necessidade de revisar este importante documento, com a ajuda de especialistas e com um novo olhar.

Como uma das boas práticas de governança corporativa, o stewardship também deveria ser um tema amplamente difundido entre os investidores e bem recepcionado pelas empresas que tenham compromisso com a ética, a transparência e a integridade nas relações com seus investidores. Mas este é um conceito ainda praticamente desconhecido, visto com algum preconceito e quase inexistente no Brasil.

Dois números demonstram bem esta situação: a Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais (Anbima) representa mais de 900 gestoras de ativos, das quais somente 27 são signatárias do Código Brasileiro de Stewardship. Além disso, o Brasil ainda não conta com uma resolução do órgão regulador do mercado de capitais (CVM) que ao menos esteja nos moldes do “comply or explain” praticado em outros países.

Há um ano, o Financial Reporting Council (FRC), órgão regulador do mercado de capitais britânico,  publicou um guia muito útil, intitulado “Destruidor de mitos sobre Governança Corporativa e Stewardship”. O documento explica, de maneira bastante didática e sintética, o que são esses dois conceitos e qual o papel do FRC na aplicação destas práticas no Reino Unido.

Destaco aqui alguns trechos que acredito serem essenciais para o mercado de capitais em qualquer país. No caso do Brasil, chamo a atenção especialmente para os termos grifados, que ainda são pouco conhecidos ou praticados entre as empresas locais:

  • “A governança corporativa… envolve leis, regulamentos, códigos e a ação voluntária das empresas e seus acionistas. Isto inclui questões importantes como deveres dos conselheiros, remuneração, auditoria, direitos dos acionistas, estrutura de capital e relatórios corporativos”.
  • “O stewardship é responsável pela alocação, gerenciamento e supervisão do capital para criar valor de longo prazo para os clientes e beneficiários que levam a benefícios sustentáveis para a economia, meio ambiente e sociedade. Existe para definir altos padrões de demonstração da eficácia da gestão aos investidores e permite que os investidores demonstrem um envolvimento bem-sucedido com as empresas”.
  • “Todas as empresas são diferentes e reconhecemos que pode haver circunstâncias em que algumas podem alcançar um alto padrão de governança sem o estrito cumprimento de disposições. Se você optar por não cumprir uma disposição você deve informar e explicar o porquê. É importante que as explicações sejam claras e com a alta qualidade apropriada”.

Acredito que somente com a ampla difusão destas e outras boas práticas de governança corporativa e stewardship, ao ponto de que elas façam parte da cultura diária de nossas empresas e investidores, iremos progredir para um melhor e mais confiável mercado de capitais, com benefícios de longo prazo para o desenvolvimento sustentável da economia brasileira.

* Geraldo Affonso Ferreira foi executivo em grandes empresas e é especialista em Governança Corporativa, atuando como membro de conselhos de administração e fiscal e comitês de auditoria