A derrocada da Americanas já é um capítulo na história do mercado de capitais e do próprio capitalismo brasileiro. Não só por se configurar como a maior fraude contábil de que se tem notícia até hoje por essas bandas, mas por ser protagonizada pelos três financistas tidos como símbolos maiores de sucesso do mercado brasileiro, Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira.
Cercados por uma eterna aura de mistério, os três ergueram um império de empresas sem fronteiras, cuja jóia da coroa é a maior cervejaria do planeta, a AB Inbev.
A força das reações tem sido proporcional ao tamanho da fama e relevância dos três. Muita gente se irritou com uma suposta leniência inicial da imprensa em relação às responsabilidades dos acionistas de referência da companhia na lambança que veio à tona.
Ato contínuo, as redes foram inundadas por memes ácidos contra os três e uma chuva de opiniões definitivas sobre como a cultura da busca cega e exclusiva pelo lucro do acionista forjou o rombo ao criar incentivos e uma cultura corporativa nefastos.
Muita gente que se criou dentro do que se convencionou chamar de ‘cultura Ambev’ e, antes disso, no finado Banco Garantia, se ressentiu da ferocidade das críticas que, segundo essa visão, buscaram destruir reputações sem levar em conta tudo de bom que os três produziram nas décadas em que estiveram no topo.
Como jornalista de economia e negócios há quase três décadas, cobri com relativa constância a trajetória do trio. Os dias de glória do Garantia, que inspirou e segue inspirando outros bancos de investimento no país. Sua debacle espetacular em meio à crise da Rússia. A compra da tradicional Antarctica pela Brahma. A criação da GP Investimentos, o surgimento da América Latina Logística (atual Rumo), a compra da tradicional Interbrew, que deu origem à AB Inbev. O surgimento do 3G e as tacadas na área de fast food, com Burger King e outras redes e, depois em alimentos, com Kraft Heinz.
Nos meus últimos anos num grande jornal, cobri os primeiros sinais de que algo não ia bem no reino. Em 2018, a fórmula de sucesso claramente estava sendo posta à prova pelos novos tempos.
Naquele ano, Lemann se declarou um dinossauro assustado, inicialmente incapaz de reagir à onda de inovação nos setores em que atuava. Naquele mesmo ano, a Unilever, dirigida por Paul Polman, rejeitou uma tentativa de aproximação da Kraft Heinz, expondo a existência de duas visões completamente distintas do papel de uma empresa na economia e na sociedade.
De um lado, o capitalismo de stakeholder pregado por Polman, de outro, o capitalismo de shareholder encarnado pelo trio em seu estado puro.
Em 2019, o trio foi obrigado a reconhecer que o ‘sonho grande’ de construir uma gigante global de alimentos tinha acabado. Em meio à incapacidade da Kraft Heinz de responder à altura às novas tendências do mercado de alimentos, entre as quais a busca por produtos saudáveis, ainda surgiu a descoberta de um esquema de fraude contábil que vigorou de 2015 a 2018, quando o trio já estava no controle do negócio.
Olhar fatos históricos com as lentes atuais pode levar a uma dificuldade de compreensão.
Como pondera um investidor muito próximo a Lemann, é inegável que o modelo defendido por eles por décadas envelheceu – e não envelheceu bem. Mas também é verdade que os três elevaram as finanças e o empreendedorismo brasileiros a outro patamar, mostrando que não deveria haver limites à ambição. E isso tem um grande valor.
Quis a história que Americanas, justamente um investimento feito há 40 anos, ainda nos primórdios da construção do império dos três, se impusesse como um dramático capítulo na porção final da trajetória do trio, capaz de ressignificar todo o legado que deixarão.
Independentemente de qual tenha sido o papel da cultura do lucro a qualquer preço na construção da fraude bilionária, o fato é que os três foram os controladores da Americanas até 2021 e ainda hoje são os acionistas de referência da companhia. Ou seja, foi sob o seu controle que os desmandos aconteceram.
E de nada adianta a justificativa de que, como controladores, deram liberdade para que os executivos tocassem o negócio como donos.
O salvamento da Americanas passa, forçosamente, por uma injeção de capital, além da renegociação do seu passivo financeiro com os bancos. Hoje existe uma queda de braço de contornos ferozes entre os três acionistas e os bancos. O trio sinalizou disposição de injetar cerca de R$ 5 bilhões na empresa e os credores querem pelo menos o dobro disso para aceitarem rever as condições das dívidas.
Os três são conhecidos pelo perfil frio, calculista mesmo, ao decidir investimentos e desinvestimentos. À luz dessa mentalidade, a avaliação que certamente estão fazendo é se a capitalização significa colocar dinheiro bom num negócio ruim, ampliando as perdas que podem ter. Ou se o investimento adicional poderá ser recuperado, ajudará a salvar o que já está investido e colocará a varejista numa rota de recuperação e crescimento.
A essa altura, também deve estar sendo considerado se a decisão de não injetar recursos na Americanas pode levar a uma contaminação de seus outros negócios, com a indisposição da comunidade financeira.
Mas, diante de todos os danos que a quebra ou encolhimento da Americanas pode causar aos milhares de funcionários, fornecedores, clientes e acionistas minoritários, sem falar nos credores, talvez a conta a ser feita pelo controlador não devesse se resumir à frieza dos números. Dinheiro não falta a três dos homens mais ricos do Brasil e do mundo.
Os primeiros sinais dados indicam uma tendência a não abandonar a tradição. Até agora, optaram por jogar duro.
Na largada, perderam a oportunidade de anunciar uma capitalização juntamente do fato relevante que anunciou o rombo ao mercado, o que teria ajudado a tranquilizar os ânimos de credores, fornecedores e clientes.
Na sequência, nas primeiras conversas com os bancos, optaram por exigir dos credores uma contrapartida generosa para que aceitassem injetar capital novo para salvar o negócio.
Para quem esperava uma mudança de postura conforme a situação se agravasse, o pedido de recuperação judicial, protocolado ontem, caiu como um balde de água fria.
Nele, toda a responsabilidade é jogada nas costas dos credores. Os controladores sequer são citados e a possibilidade de uma capitalização nem é aventada. A Americanas é descrita como uma empresa perfeita, que dá empregos e cumpre seu papel social, mas que está sendo asfixiada pela ganância dos malvados banqueiros.
A essa altura, pouca gente tem acesso à estratégia de negociação adotada pelos três e conhecimento de até onde estão dispostos a ir para salvar a Americanas da falência. Mas a resposta que darão à crise certamente ajudará a escrever as suas biografias e deixará uma marca na história do capitalismo brasileiro.
Afinal, quanto vale o legado que os três gostariam de deixar?