A grotesca debacle das Lojas Americanas, uma das mais populares varejistas brasileiras, pode ser vista de duas formas.
A primeira é a visão tradicional, segundo a qual executivos da companhia durante anos supostamente fraudaram as demonstrações financeiras da empresa ocultando um rombo colossal, trazendo vultosos prejuízos a centenas de milhares de acionistas, debenturistas, credores, fornecedores, cotistas dos fundos imobiliários que detêm suas lojas, os executivos que possuíam parcela relevante de suas reservas em planos de incentivo, além de colocar em risco o emprego de mais de 40 mil pessoas.
As instituições competentes devem apurar a participação direta ou indireta dos administradores, controladores, conselheiros e auditores, punindo exemplarmente os envolvidos.
Nesta visão tradicional – e ela está correta – a Americanas é protagonista de um dos maiores escândalos da história do mercado de capitais, com dimensão relevante na escala global.
Mas há uma maneira complementar de olhar para esta questão, considerando a Americanas, além de autora, também como engrenagem de um sistema muito maior e muito mais complexo, um sistema nocivo que transcende as fronteiras da empresa e que precisa ser debatido – sob o risco de continuarmos nos deparando com histórias semelhantes.
Consta no site da Americanas que um dos valores da companhia é “ser obcecado por resultados”. Segundo definição do dicionário Michaelis da língua portuguesa, obcecado significa “cego; que está com a razão sem discernimento; que insiste no erro; apegado a uma ideia fixa de maneira irracional”.
Não é difícil concluir que, se o valor da empresa é a obsessão por resultados, assim será sua cultura e, portanto, sua prática.
A busca pelo resultado a qualquer custo inclui passar por cima dos interesses dos stakeholders para atender interesses próprios, muitas vezes negligenciando integridade e ética.
Neste sentido, não podemos ver a Americanas como um caso isolado, mas sim como produto de uma cultura da fase mais hostil do capitalismo, que teve seu auge nos anos 1990 e 2000 – coincidentemente o período em que a Americanas destacava-se e figurava entre as empresas mais admiradas do país.
A transição dessa versão mais hostil do capitalismo (shareholder capitalism) para um sistema em que empresas contemplam seus stakeholders nos processos decisórios (stakeholder capitalism) está em curso. Provavelmente o debate ESG só encontrou espaço para reverberar por conta dessa transição.
Em 2019, a FAMA Investimento comunicou que estava zerando sua exposição em Americanas, entre outras coisas, por questões ESG, ligadas a relações nada sadias com seus fornecedores e opacidade das demonstrações financeiras, além de dificuldade de acesso à companhia.
A postura da companhia, escancarada na última semana, não passava despercebida a um olhar ESG mais atento, que busca, além dos números, entender como uma companhia se relaciona com seus stakeholders, sua cultura e governança.
De acordo com uma pesquisa realizada em 2021 pelo especialista em governança corporativa Renato Chaves, em parceria com a FGV, dentre todas as empresas pertencentes ao Índice Bovespa, a Americanas é a que tinha a segunda maior discrepância salarial entre o CEO e a média salarial dos colaboradores: o principal executivo da companhia tinha uma remuneração 431 vezes maior do que a média da empresa.
Vale ressaltar que em pesquisa semelhante, realizada em 2019, a Americanas ocupava o topo do ranking das maiores disparidades salariais, com o CEO recebendo 663 vezes mais do que a média salarial da companhia. Ou seja, a empresa figurava constantemente nesse ranking, indicando um potencial problema nos sistemas de incentivo.
Apenas como parâmetro de comparação, nas Lojas Renner, varejista com melhor reputação em governança, este índice de disparidade é de 137 vezes, ainda distante da média de 44 vezes do índice FTSE-350 (Reino Unido). Na média do Sistema B Brasil – referência de empresas que equilibram propósito e lucro – o índice é de 20 vezes, uma fração do praticado na Americanas.
Remuneração e incentivos são críticos na agenda de governança corporativa e podem levar a um conflito de agência, que se trata do desalinhamento de interesses entre os gestores da companhia e seus acionistas, podendo levar o alto comando das empresas a tomar decisões em benefício próprio.
O caso da Americanas não pode ser visto como isolado.
Relação leonina com fornecedores, falta de transparência no balanço, dificuldade de acesso, alto turnover de executivos e incentivos financeiros desequilibrados são sinais inequívocos de empresa com más práticas de governança. Tais características não são exclusivas da Americanas, mas sim presentes em empresas com cultura nociva, que buscam lucro a qualquer custo, independentemente dos princípios.
Inferimos daí a importância de integrar ESG às análises, tratando-se de uma poderosíssima ferramenta de mitigação de risco e maximização de retorno.
Os críticos à abordagem ESG precisam entender de uma vez por todas que ESG não se trata de abraçar árvores ou observar pássaros. Já os adeptos precisam entender de uma vez por todas que ESG não trata somente de medir emissão de carbono ou equidade de gênero.
Sem cultura corporativa adequada e sem governança, não há qualquer chance de a responsabilidade socioambiental ser mantida.
A Americanas pertence ao Novo Mercado, por muitos considerado um selo de virtude nas questões de governança corporativa. Ledo engano.
Vale lembrar que grande parte dos escândalos em matéria de más práticas de governança, fraude ou operações lesivas a acionistas minoritários ocorreram em empresas pertencentes ao Novo Mercado, tais como IRB, CVC, Linx, Smiles, JBS, Hypera, todas as empresas “X” de Eike Batista, entre outras.
O Novo Mercado nada mais é do que um conjunto de normas às quais algumas empresas atendem. Boa governança não é uma questão normativa, mas sim de bons processos e princípios éticos.
A Americanas é também integrante do ISE – Índice de Sustentabilidade Empresarial da B3. Obviamente, uma empresa que possui cultura tóxica e comete fraudes no balanço não é sustentável. Atender a determinados requisitos – bastante amenos, por sinal – não faz da empresa responsável ou sustentável. Há uma série de empresas que não figurariam na composição do ISE se os critérios fossem minimamente mais rigorosos.
Infelizmente, o mercado sempre procura atalhos. É muito mais fácil recorrer a uma lista do que realizar uma análise adequada e exaustiva.
Pertencer ao Novo Mercado não significa ter boa governança, pertencer ao ISE não significa ser avançado em ESG e possuir o selo “IS” da ANBIMA não significa que o fundo seja sustentável (nenhum fundo de ações do Brasil merece este sufixo).
O bizarro escândalo das Americanas não pode resultar “apenas” no prejuízo de dezenas de bilhões de reais.
Empresas precisam fazer um diagnóstico de cultura, entender sua toxicidade, avaliar se estão contemplando seus stakeholders nos processos decisórios, fortalecer as boas práticas de governança, alinhar incentivos e cuidar da transparência.
Investidores devem valorizar ESG como ferramenta extremamente valiosa de mitigação de risco e incremento de retorno, compreendendo a complexidade do assunto e incorporando robustez em seus processos analíticos, além de demandar das companhias investidas a melhoria das práticas e transparência.
Praticantes ESG devem entender a importância da governança corporativa, atualmente ofuscada em meio às temáticas ambientais. Nenhuma boa prática é sustentável a longo prazo sem boa governança.
Os reguladores precisam entender o tamanho de suas responsabilidades, tanto na regulação quanto na fiscalização. Da mesma forma, precisam entender que o aculturamento do mercado é fundamental e terem o devido cuidado na formulação de listas, ratings e concessão de selos.
A cultura corporativa da ganância, dos atalhos, e objetivos puramente financistas precisa ser substituída pelo olhar ético com respeito absoluto a todos os stakeholders.
* Fabio Alperowitch é sócio fundador da Fama Investimentos.