A divulgação da informação de que o ex-chairman executivo da Natura, Roberto Marques, tinha uma remuneração anual na casa das várias dezenas de milhões causou indignação em muita gente e trouxe à luz a discussão sobre o abismo salarial existente entre a cúpula e a base das empresas.
O pacote de compensação de Marques já era, há pelo menos dois anos, motivo de queixa entre investidores atentos aos dados reportados pela fabricante de cosméticos à Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
Mas a companhia deu mais transparência às informações no texto das propostas que vai submeter à votação dos acionistas em 26 de abril, entre as quais está justamente um corte de 32% no pacote de remuneração do alto escalão.
Segundo o documento, em 2020 Marques recebeu R$ 66 milhões entre salários, benefícios, bônus e ações. Em 2021, ano em que a companhia já enfrentava problemas e perdia valor em bolsa, o total foi a R$ 73 milhões.
No ano passado, mesmo com seu desligamento anunciado em junho, a compensação total foi de R$ 150 milhões, incluído aí seu pacote de rescisão. Vale notar que grande parte disso foi recebida em ações da Natura, que Marques só poderá vender futuramente, mas que, pelas regras contábeis, teve que ser reconhecida de uma só vez pela empresa.
O caso chama ainda mais atenção porque a Natura é uma das primeiras empresas no Brasil que vem desenvolvendo um trabalho consistente para implementar uma política de ‘living income’, ou ‘renda digna’, para os colaboradores. No caso, para as consultoras que vendem seus produtos e são cruciais para o modelo de negócios.
O conceito de living wage ou living income pressupõe que a renda seja suficiente para que uma pessoa possa pagar os seus gastos com moradia, saúde, educação, alimentação e, assim, viver dignamente – ou seja, aquilo que deveria ser o verdadeiro ‘mínimo’.
Em 2021, ano em que Marques embolsou R$ 73 milhões, a empresa calculou que uma renda digna no Brasil corresponderia a R$ 16,13 por hora, o equivalente a mais de duas vezes o salário mínimo no país.
A partir disso, o diagnóstico foi que as consultoras consideradas sênior conseguem extrair uma renda que ultrapassa essa marca da renda digna. Mas a companhia reconheceu o trabalho a ser feito para que as consultoras em estágios iniciais também cheguem lá.
Tudo isso mostra que até uma companhia reconhecida por liderar as melhores práticas ESG, como é o caso da Natura no Brasil, pode deslizar na condução de aspectos da agenda e incorrer em incoerências. A correção de rota se faz necessária, é parte legítima do processo e é justamente o que a companhia faz agora ao propor um corte na remuneração do C-Level e do conselho.
Mas, mais do que expor uma situação em particular, a revelação é importante por pautar uma discussão que costuma ser esquecida na agenda ESG, mas que deveria ocupar o topo dela num país com desigualdades sociais abissais como o Brasil.
Afinal, a colossal diferença salarial entre a base e o topo da pirâmide das empresas alimenta e perpetua a desigualdade social que se vê fora delas. As últimas décadas marcaram a era dos super salários dos executivos, que cresceram exponencialmente, enquanto a renda da base se achatou.
Reduzir as desigualdades sociais é, sem dúvida, um dos principais desafios econômicos do nosso tempo. E não há como fazer isso sem garantir que a riqueza gerada pelas empresas beneficie as pessoas de forma mais equânime, assegurando um padrão de vida digno para quem está nos andares de baixo.
Dentro da lógica do capitalismo de stakeholder, o acionista não deve ser o grande protagonista do valor gerado por uma empresa, que deve ser compartilhado com os demais stakeholders do negócio: funcionários, fornecedores e comunidade.
Mas, seguindo essa lógica, qual seria, afinal, um gap salarial aceitável? E faz sentido falar em diferença justa quando se trata da distribuição de riqueza criada dentro de uma empresa privada? Quais são os parâmetros para guiar essa discussão?
Primeiro é importante um diagnóstico, ou seja, dados que mostrem onde estamos.
Nesse sentido, o universo das grandes empresas está prestes a ganhar novos elementos no Brasil a partir de maio. Neste ano, como parte de um avanço no reporte de fatores ESG, o formulário de referência que as companhias listadas apresentam à CVM terá que informar, obrigatoriamente, a razão entre a maior remuneração individual (incluindo a variável) e a mediana da remuneração individual de todos os funcionários.
Nos Estados Unidos a divulgação desse gap salarial pelas companhias abertas já é obrigatória e sempre gera discussões. Os últimos dados compilados, relativos a 2021, mostram que os CEOs ganharam 399 vezes a remuneração do funcionário médio naquele ano. Um ano antes, esse múltiplo havia sido de 366 vezes. Cerca de 30 anos atrás, essa razão era inferior a 60 vezes.
Os números brasileiros também devem causar espanto. O consultor em governança e conselheiro de empresas Renato Chaves chegou a fazer esse cálculo ‘na mão’ usando dados publicados pelas empresas em 2019 e concluiu que essa razão chegava a um máximo de 663 vezes no caso da varejista Americanas – que está agora no epicentro de um escândalo contábil por fraudar seus resultados e, por consequência, inflar a remuneração variável dos executivos.
Conforme reportagem no Valor, ele analisou 70 companhias e concluiu que em 32 delas o múltiplo ficava acima de 100 e em 17 era de mais de 200 vezes o salário médio dos funcionários. Liderando a lista estavam também nomes como Pão de Açúcar, Magazine Luiza, Itaú, Santander e JBS.
Se a realidade mostra gaps de 100, 200, 600 vezes, qual deveria ser a diferença num sistema de distribuição mais equânime da riqueza?
Renato Chaves diz que a medida da boa prática deveria ser “o que é razoável para estimular a base sem ‘esvaziar’ o CEO”. Ou seja, o suficiente para atrair e reter um bom executivo para liderar a empresa ao mesmo tempo em que mantém os funcionários motivados e sem ressentimentos.
Num universo de empresas que seguem a cartilha do capitalismo de stakeholder e procuram gerar benefícios à sociedade e ao meio ambiente além de dar lucro aos acionistas, esse gap é uma fração do observado nas empresas listadas no Brasil ou nos Estados Unidos.
Para obter o certificado de Empresa B, um dos quesitos em que as empresas são avaliadas é o das relações com os colaboradores e, dentro desse pilar, existe uma pergunta específica sobre o múltiplo salarial entre a maior e a menor remuneração da empresa.
Em 2021, mais de 90% das B Corps na América Latina tinham um múltiplo salarial de até 20 vezes.
Uma dessas B Corps, a gestora de fundos de impacto Vox criou um teto de 10 vezes para a razão entre o maior salário, o do CEO, e a remuneração de entrada de um analista.
Um estudo realizado por pesquisadores da Harvard Business School em 40 países em 2014 mostra que existe um desejo por uma redução do gap salarial e que as diferenças existentes são muito subestimadas (o que obviamente alimenta a frustração quando os números reais são conhecidos).
Nos Estados Unidos, por exemplo, onde a razão entre o salário dos CEOs para o trabalhador médio das empresas estava em 354 vezes naquele ano, as pessoas achavam que a diferença era bem menor (30 vezes) e consideravam que o justo seria uma diferença de apenas 7 vezes. Haja distância entre expectativa e realidade.