GOVERNANÇA

Lei anticorrupção que condenou empresas da Lava Jato é novo alvo de Trump

Decreto suspende aplicação da lei por seis meses; empresas americanas perdem competitividade no exterior, diz presidente americano

O presidente americano, Donald Trump

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, suspendeu temporariamente a aplicação da lei que proíbe empresas baseadas nos Estados Unidos de subornar autoridades públicas em outros países. Instituída em 1977, a legislação já foi empregada em casos de corrupção da Petrobras e Odebrecht. 

Especialistas temem que a decisão de Trump impacte as áreas de compliance de empresas, funcione como um “passe livre” para a corrupção americana mundo afora e influencie outras jurisdições a seguir um caminho parecido. Os EUA são referência nas investigações corporativas sobre pagamentos indevidos em troca de favores.

O republicano assinou na noite de segunda-feira (10) um decreto determinando que a procuradora-geral do país, Pam Bondi, suspenda por seis meses as atividades relacionadas à Lei de Práticas Corruptas no Exterior (FCPA, na sigla em inglês). Neste período, investigações em andamento devem ser revistas, e o Departamento da Justiça terá de emitir políticas e diretrizes atualizadas. 

O foco deve se voltar a empresas americanas vinculadas a organizações criminosas transnacionais, conforme memorando publicado no fim do mês passado.

Trump quer que a FCPA tenha seus “limites apropriados” restaurados. “Parece boa no papel, mas [na prática] é um desastre”, disse o presidente sobre a lei. Segundo ele, ainda que um americano vá para um país estrangeiro fazer negócios legalmente, uma investigação e um indiciamento são quase garantidos. “E ninguém quer fazer negócios com os americanos por causa disso”, afirmou.

O argumento do prejuízo comercial existe há tempos, diz Bruno Camargo, sócio-fundador da XiCa Advogados e especialista em casos de compliance e anticorrupção. “Trump está ouvindo as dores de determinados setores e abaixando a barra de uma regra estrita, de uma legislação bastante agressiva.”

Por que é importante?

A lei americana foi uma das primeiras do mundo a tratar das práticas corruptas para além das fronteiras e surgiu como uma tentativa de instituir um regime de responsabilização e prestação de contas. 

“A legislação reconhece que as empresas norte-americanas que estão cometendo esses atos de suborno nos outros países muitas vezes não são punidas, por diversas razões, como problemas na independência do Judiciário ou do Ministério Público [dos países onde são cometidos os crimes]”, afirma Guilherme France, gerente de pesquisa e advocacy da Transparência Internacional. 

A legislação tem um alcance ampliado e inclui também companhias listadas em bolsas de valores dos Estados Unidos, com subsidiária no país ou cujo caso envolva instituições financeiras americanas.

Foi por essa razão que a Odebrecht (atual Novonor), que mantinha unidades nos EUA, e a Braskem e a Petrobras, com seus recibos de ações (ADRs) negociados na Bolsa de Nova York, foram processadas com base na lei. Ambos os casos fizeram parte do escândalo da Lava Jato.

Em dezembro de 2016, Odebrecht e Braskem foram julgadas culpadas e concordaram em pagar juntas US$ 3,5 bilhões para as autoridades dos EUA, Brasil e Suíça – no que até então, foi o maior acordo de corrupção internacional. A Petrobras, em setembro de 2018, foi multada em US$ 853,2 milhões 

“Quando se diz que a corrupção está liberada, desde que não prejudique a competitividade americana, se dá uma sinalização que vai ser escutada pelos governos dos outros países”, diz France.

Consequências

Os Estados Unidos fizeram um esforço ao longo das últimas décadas para promover a adoção de políticas anticorrupção em outros países e de convenções em organizações multilaterais, como as Nações Unidas e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Eles são, portanto, líderes globais nesta pauta. 

“Se essa ordem representa uma carta branca para as empresas americanas subornarem agentes públicos no mundo todo, é possível que outras autoridades determinem medidas semelhantes para garantir que as suas empresas não fiquem atrás”, afirma France.

O especialista diz que o prejuízo pode ser ainda mais grave para as economias em desenvolvimento, já que muitos dos casos ocorrem no Sul Global. O que deve ser observado agora é como a Justiça brasileira irá seguir em relação aos acordos já firmados, uma vez que o monitoramento e a aplicação de ações anticorrupção eram feitos de forma bilateral em determinados casos.

Dentro das empresas, a mudança na legislação deve reduzir as equipes de conformidade nas companhias, diz Camargo. “Durante muitos anos, vi empresas construírem verdadeiros exércitos de compliance por conta da FCPA. Agora, olhando as declarações do Trump e as atribuições da procuradoria geral, a lei pode não parecer mais tão importante. É quase um salvo conduto, ainda que não esteja escrito assim.”

Disputa comercial

O Departamento de Justiça dos EUA já chegou a lidar com uma avalanche de casos de FCPA, conta Camargo. Uma divisão especial foi criada para lidar com os casos de suborno em outros países. 

Além das multas pesadas, a empresa condenada precisa reestruturar seu modelo de negócio e se remediar de várias formas. Nem todas chegam ao outro lado. “Enquanto isso, uma empresa europeia pode estar realizando a mesma prática e não ter que lidar com esse processo”, diz o advogado.

Na ordem executiva, a Casa Branca diz que a lei foi “esticada além dos limites adequados e abusada de uma maneira que prejudica os interesses dos Estados Unidos”. A aplicação “exagerada” da lei desperdiça recursos do Estado e prejudica a competitividade americana e sua segurança nacional, de acordo com a presidência.