Os presidentes dos conselhos de administração de algumas companhias brasileiras com ações em bolsa chegam a receber mais de 70% de todo o pacote de remuneração do colegiado, gerando disparidades que incomodam investidores e contrariam as melhores práticas de governança corporativa.
Dados públicos enviados pelas próprias empresas à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) mostram que alguns presidentes, com rendimentos anuais ao redor de R$ 10 milhões, chegam a representar entre 50% e 75% da remuneração global do conselho.
As companhias não são obrigadas a informar rendimentos individuais, mas têm que divulgar a remuneração mais alta, a mais baixa e também a média. Com algumas exceções, quase sempre a maior remuneração corresponde à do presidente.
Também com raras exceções, os presidentes dos conselhos com super pacotes de remuneração são fundadores, controladores ou membros das famílias controladoras das companhias.
Na construtora MRV, por exemplo, o fundador Rubens Menin, que tem 38% do capital da empresa, recebeu em 2022 R$ 9,8 milhões como chairman da empresa, o equivalente a 70% dos quase R$ 14 milhões destinados aos sete conselheiros.
Na locadora de veículos Localiza, os R$ 13 milhões recebidos pelo fundador Eugenio Mattar no ano passado corresponderam a 65% do pacote total do colegiado.
Na seguradora Porto Seguro, Bruno Garfinkel, da família controladora, recebeu 76% da verba do conselho em 2021, ou R$ 10 milhões.
No ano passado foram R$ 11 milhões, mas, pelas informações divulgadas, não foi possível calcular o percentual que isso representou do total.
Na cervejaria Ambev é mais difícil saber a quem se destinaram os 62% da verba do conselho no ano passado.
A companhia tem dois co-chairmen, o catarinense Michel Doukeris, que desde 2021 é o CEO global da AB Inbev, e Victório De Marchi, que representa a Fundação Antonio e Helena Zerrener, que controlava a antiga Antarctica e faz parte do bloco de controle da Ambev.
O Grupo Pão de Açúcar é um caso que se destaca não só pelo percentual da verba destinada a um único conselheiro (76%), mas pelos valores absolutos envolvidos. Em 2021, a maior remuneração do conselho foi de quase R$ 26 milhões e no ano passado, R$ 43 milhões.
Mas, na varejista, o controlador Jean Charles Naouri exerce a função de chairman sem ser remunerado. O destinatário dos super pacotes de compensação foi o executivo Ronaldo Iabrudi, ex-CEO do GPA e homem de confiança de Naouri. Sua remuneração no conselho do Assaí, spin off do GPA, foi objeto de contestação da gestora JGP em 2021.
Iabrudi deixou o conselho do GPA em outubro do ano passado e a proposta da empresa para a remuneração total do colegiado em 2023 caiu para R$ 25 milhões – menos da metade dos R$ 56 milhões de 2022.
A Natura é outra empresa que tinha enorme disparidade na remuneração do antigo chairman, que acumulava o papel de principal executivo. Com sua saída, a companhia reduziu o pacote de compensação do colegiado e da diretoria.
Os dados refletem alguns dos casos de maior concentração de remuneração nos conselhos. O levantamento não é um ranking das maiores compensações e não tem a pretensão de ser um estudo exaustivo de todo o universo de companhias listadas.
As informações de 2021 foram compiladas pelo consultor em governança Renato Chaves e o estudo foi ampliado pelo Reset para 2022, a partir das propostas que as empresas enviaram para votação nas assembleias de acionistas deste ano.
Mudança na Suzano
Na fabricante de papel e celulose Suzano, em que o chairman e membro da família controladora David Feffer recebeu cerca de 50% da remuneração do conselho nos últimos anos, o engajamento de investidores está levando a mudanças a partir deste ano.
BNDES e Dynamo, ambos com posições acionárias relevantes na companhia, vinham trabalhando há alguns anos na pauta.
Segundo duas pessoas disseram ao Reset, a remuneração fixa de Feffer, que foi de R$ 8,3 milhões nos últimos três anos, foi cortada para menos da metade em 2023, sem correção monetária. E, adicionalmente, foi criado um componente de remuneração variável da ordem de R$ 3,1 milhões, na forma de opções de ações da companhia, atrelado a metas de desempenho de medidas durante três anos.
A Suzano confirma que “foi revisitada para 2023 a configuração da remuneração do chairman, que passa a incluir um componente de remuneração variável de longo prazo, tornando-se assim um modelo mais alinhado na visão da companhia ao interesse de seus/suas acionistas.”
No caso de Feffer, a dedicação exclusiva ao conselho da Suzano, a participação em diversos comitês também remunerados e a sua importância estratégica para a companhia foram levados em conta pelos investidores. Mas isso passará a ser reconhecido na remuneração variável, por mérito.
“Como o conselho é um órgão colegiado, em que cada conselheiro tem exatamente um voto, a discrepância de remuneração pode levar a um desequilíbrio de poder nas discussões”, pondera um investidor da Suzano.
Separação de papéis
A pesquisadora em governança e fundadora da Virtuous Company, Angela Donaggio, diz que na origem de muitas dessas super remunerações está o fato de que no passado os fundadores ou controladores acumulavam a presidência executiva com o papel de conselheiro.
Conforme a bolsa brasileira passou a proibir essa acumulação em todos os seus segmentos de listagem, os controladores deixaram o cargo de CEO para ficar na presidência do conselho, diz ela.
“Uma remuneração extraordinária leva a crer que o presidente do conselho está recebendo por uma presidência executiva e isso levanta preocupações. O órgão está exercendo o monitoramento e a fiscalização da gestão ou a gestão está acontecendo acima do conselho?”, questiona.
Uma outra hipótese, diz Donaggio, é que o controlador esteja usando de sua posição acionária para estabelecer uma remuneração maior para si próprio, o que também configura um problema de governança.
O que dizem as empresas
O Reset procurou as companhias para checar os dados, confirmar a quem era atribuída a maior remuneração e conhecer as razões para a disparidade de compensação.
A Suzano confirmou a maioria dos dados e comentou a alteração na política de compensação do chairman, mas retificou as fatias da sua remuneração para 41% em 2021 e 43% em 2022, justificando que devem ser computados os encargos sobre o pacote de remuneração do conselho.
A MRV informou que preferia não se manifestar e as demais empresas enviaram notas em que, de forma geral, afirmam respeitar as melhores práticas de governança e fazer uso de pesquisas de mercado e consultorias independentes para definir as remunerações de seus conselheiros.
A seguir, a íntegra das notas:
Ambev
“A remuneração do nosso conselho é pública, e segue como referência práticas de mercado e estudos de consultorias independentes. Por conta disso, considera-se também a experiência, o tempo na função e participação em algum comitês. É importante esclarecer também que os valores apresentados publicamente no Formulário de Referência são os reconhecidos contabilmente no resultado, e não necessariamente desembolsados pela companhia nem tampouco efetivamente recebido pelo Conselheiro.”
Localiza
“A Localiza esclarece que a remuneração do Presidente Executivo do Conselho de Administração é definida a partir de pesquisas de mercado e de instituições de alta reputação, refletindo as responsabilidades assumidas e tempo dedicado à função.”
Pão de Açúcar
“A companhia informa que segue as melhores práticas de Governança Corporativa e que a remuneração do colegiado e de seus administradores é proporcional às suas atribuições e responsabilidades, e está atrelada a indicadores de atingimento e geração de valor.”
Porto Seguro
“A empresa informa que não comenta remunerações e rendimentos de colaboradores e membros de seu Conselho de Administração, seguindo políticas corporativas de respeito ao direito individual à privacidade. Destaca ainda que opera em conformidade com a legislação brasileira, sempre visando as melhores práticas de governança.”