A Movida virou uma B-Corp. Agora, precisa convencer o mercado

Selo atesta seriedade da agenda socioambiental, mas governança e metas para neutralização de carbono ainda são alvo de ceticismo dos investidores

A Movida virou uma B-Corp. Agora, precisa convencer o mercado
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Pouco antes de a pandemia trancar o mundo dentro de casa, a Movida reuniu investidores e jornalistas no começo de março para comemorar um feito: a locadora de veículos se tornara a segunda empresa listada na bolsa brasileira a conseguir o selo de ‘empresa B’, ao lado apenas da Natura. 

Não é pouca coisa: trata-se de uma certificação complexa, especialmente para empresas de grande porte, que atesta que a companhia realmente leva a sério e coloca em prática princípios socioambientais na condução dos negócios. A varejista Magalu e siderúrgica Gerdau estão há tempos no processo. 

Mas, apesar da conquista, a Movida ainda precisa enfrentar duas questões cruciais: demonstrar como vai transformar os compromissos ambientais em ações mais concretas e vencer o ceticismo dos investidores em relação à sua governança.

A meta de neutralização de emissões é ambiciosa. A Movida quer ser uma empresa neutra em carbono até 2030, compensando inclusive as emissões dos veículos que aluga — algo inédito na indústria.

Quem foi ao evento na Casa Natura, em março, saiu com a impressão que o problema já estava praticamente resolvido. 

Num anúncio feito com pompa, a Movida se comprometeu a plantar 1 milhão de árvores até 2022, contribuindo para o projeto de reflorestamento do Corredor de Biodiversidade do Araguaia, que une o cerrado à floresta amazônica.

Correndo atrás

Não é bem assim. “Ainda não sabemos exatamente como vamos chegar lá”, diz o CFO da Movida, Edmar Lopes. “Lançamos o compromisso e vamos ter que descobrir no caminho”.

Desde 2009, a companhia tem um programa pioneiro chamado Carbon Free, em que o consumidor paga uma taxa extra de R$ 1 por diária e a Movida entra com o mesmo valor. O dinheiro é usado para plantar árvores que vão compensar as emissões durante o uso do carro (que normalmente roda com etanol, menos poluente que a gasolina).

A adesão ao programa, no entanto, é baixa. Até o fim de 2019, foram plantadas apenas 54 mil mudas. Para atingir a meta de 1 milhão de árvores em um ano e meio, a Movida quer ampliar o acesso ao programa, alavancando-se especialmente com parcerias na área de gestão de frotas. 

“O plano é massificar ou potencializar o Carbon Free de maneira muito diferente do que a gente tinha até agora”, diz Lopes. “Se o plano der errado, vamos pagar tudo.” O projeto, já previsto no orçamento, tem custo estimado em R$ 9 milhões. 

Mas ainda que consiga cumprir o objetivo, as árvores do Araguaia apenas começam a dar conta do compromisso. 

A Movida estima que seus carros emitiram 186 mil toneladas de carbono equivalente ao longo de 2019. Como são necessárias sete árvores para neutralizar uma tonelada de carbono equivalente, a meta de plantio neutralizaria cerca de 140 mil toneladas de carbono. 

Resta saber ainda como neutralizar as emissões decorrentes do crescimento estimado para a companhia nos próximos anos. 

“A Movida mantém investimentos em projetos de uso consciente dos recursos naturais, como ações de eficiência energética e incentivo ao uso de combustíveis mais limpos”, disse a companhia em nota. “Para atingimento da meta de carbono neutro até 2030, a Movida também estuda outras opções no mercado para neutralizar suas emissões de GEE, como a compra de créditos de carbono MDL e projetos REDD+”.

O compromisso da Movida é nobre. Outras empresas do setor, como a Localiza, não consideram as emissões dos carros alugados no seu inventário. 

O assunto é polêmico porque reportar esses dados não é obrigatório e o cálculo das emissões dos veículos alugados é aproximado. Há quem diga, por exemplo, que não dá pra saber se o cliente optou por abastecer com etanol ou gasolina enquanto rodava, o que muda completamente as contas.

“Por um lado, é um mérito eles estarem fazendo esse trabalho de maneira cuidadosa”, diz um investidor que acompanha de perto o assunto. “Mas, por outro, a empresa deve pensar em como divulga a promessa: a meta não é assumir o compromisso em si, e sim de como cumpri-la”. 

Uma mudança geracional 

Fundada em 2006, a Movida foi comprada pelo grupo JSL sete anos depois e cresceu exponencialmente desde então. Passou de uma frota de 35 mil para 110 mil carros, consolidando-se como a segunda maior empresa do mercado, atrás da Localiza. 

A companhia estreou na bolsa em 2017 e nos trimestres seguintes acabou não entregando as promessas de rentabilidade, principalmente por conta da dificuldade de azeitar a operação de venda de seminovos — essencial para o retorno das locadora, cuja atividade, além de alugar, é comprar e vender bem os veículos. Com preço de R$ 7,50 no IPO, a ação chegou ao piso de R$ 5 em julho de 2018. 

Ao longo do ano passado, foi colocando ordem na operação de revenda. No último trimestre de 2019, finalmente a margem operacional do segmento, que representa metade da receita, entrou no terreno positivo. Os papéis subiram 120% em 2019 e chegaram ao topo de R$ 21 em fevereiro, antes de caírem para o patamar atual de R$ 12 em meio ao tombo generalizado provocado pelo coronavírus.

Enquanto o mercado acompanhava de lupa a saga para tentar acertar a operação, a Movida passava por uma revolução mais silenciosa nos bastidores. 

A provocação para se tornar uma empresa B veio de Fernando Simões Filho, neto do fundador do grupo.  Aos 33 anos, o filho de Fernando Simões é um típico exemplo da mudança cultural trazida pelas novas gerações às companhias. 

Trabalhou por dez anos anos nas empresas da família, mas em 2013 deixou a posição executiva para se dedicar a estudos e projetos sociais. Dois anos depois, fundou a Bemtevi, que capta recursos de investimentos e aplica em negócios sociais, nos quais o retorno da operação é reinvestido na causa. 

A proposta de mudança foi encampada pelo CEO Renato Franklin, de 39 anos, e todo o processo de certificação de empresa B levou cerca de um ano. 

“A empresa abraçou esse projeto corporativo muito no sentido de uma oportunidade de a gente se diferenciar”, conta o CFO Edmar Lopes. 

A companhia incluiu a cláusula de responsabilidade socioambiental em seu estatuto — uma mudança que, longe de ser apenas cosmética, gera uma obrigação fiduciária dos administradores com esses princípios.  Em abril do ano passado, instituiu um Comitê de Auditoria, antecipando-se a uma exigência que seria obrigatória a partir deste ano, com o regulamento do Novo Mercado da B3. 

Foi criado também um Comitê de Sustentabilidade, formado pelo CEO Renato Franklin, Fernando Filho e a conselheira independente Tarcila Ursini, que atua em outros comitês semelhantes em empresas como Santander e Grupo Baumgart. O comitê se reúne mensalmente, responde ao conselho, e dá diretrizes para um grupo de trabalho em sustentabilidade que envolve profissionais de diversas áreas da empresa. 

Mais do que isso: a empresa fez um amplo estudo para medir impactos socioambientais da sua atividade e divulgou seu primeiro relato integrado, que une as informações ESG com o negócio. 

Ao fim do processo, conseguiu uma pontuação de 83,4 pontos na metodologia B Corp — numa escala de 0 a 200, que tem como nota de corte 80. A Natura, por exemplo, conseguiu 120 pontos na sua última avaliação. O certificado é renovado a cada três anos. 

Ainda há várias lacunas a serem preenchidas. A companhia quer, por exemplo, aumentar a participação das mulheres para 50% nos cargos de liderança. Hoje, o conselho é integralmente formado por homens, todos com mais de 50 anos. Dos 11 cargos de diretoria, apenas 1 é ocupado por uma mulher. 

O ‘G’ da questão 

Apesar dos avanços, boa parte dos fundos de investimento mais focados em governança no Brasil sequer avaliam a ação da Movida, principalmente por conta de um pé atrás com a controladora JSL e por práticas contábeis que consideram ‘agressivas’. 

Não raro, esses fundos têm posições grandes na concorrente Localiza, considerada um dos nomes de qualidade do mercado brasileiro.

Fernando Simões, CEO e chairman do grupo JSL, que detém 55,1% das ações da Movida, foi alvo de um processo criminal movido na Bahia em 2009 por supostas irregularidades na licitação para fornecimento da frota de viaturas para a Polícia Militar. Ele também é presidente do conselho da locadora de veículos.

Depois de mais de 10 anos na primeira instância, o processo foi extinto no fim de agosto de 2019, por falta de provas. Mas figurou como fator de risco tanto para a JSL quanto para a Movida em relatórios arquivados na CVM. Há outros dois processos citados nos documentos regulatórios e que averiguam a existência ou não de irregularidades em contratos prestados com as prefeituras de Mogi das Cruzes e Itaquaquecetuba.

“Não olhamos Movida aqui”, diz o analista de uma grande gestora de fundos independente. “No ESG [de aspectos ambientais, sociais e  de governança] , ela não passa no nosso filtro de ‘G'”

Outra crítica costumeira à companhia entre as gestoras são os ajustes feitos nos números divulgados ao mercado. No release de divulgação dos balanços, é normal que as empresas façam algum tipo de ajuste para expurgar efeitos que consideram extraordinários ou não-recorrentes. 

Mas, no caso da Movida, o ROIC, métrica para retorno sobre o capital investido, chega a ser o dobro do calculado por analistas de gestoras e corretoras a partir dos números que constam na demonstração de resultado apresentada à CVM.

“Estou muito tranquilo quanto a tudo que a gente publica, existem diferenças legítimas para as contas do sell side [analistas de corretoras], porque a contabilização não é igual em todas as empresas”, diz o CFO da companhia. “No passado, talvez a diferença fosse maior, mas está cada vez mais convergindo”. 

“A Movida é uma história de turnaround e a certificação de B-Corp mostra que esse turnaround também está acontecendo no modo como a companhia pensa seu propósito”, diz Renata Faber, que foi analista de ações do Itaú BBA por 15 anos e hoje é consultora especializada em ESG. “No fim das contas, é um compromisso dos acionistas: ninguém consegue a certificação pensando apenas no curto prazo”.

(A matéria foi atualizada às 15h do dia 24 de abril para retificar uma informação: A assessoria de imprensa da Movida nos procurou para informar que o processo criminal movido contra Fernando Simões na Bahia em 2009 foi extinto em agosto do ano passado. A informação ainda não consta no Formulário de Referência, documento amplo sobre a empresa e seus controladores apresentado à CVM.)