Gestoras ESG derrubam veto a Vale após acordo de Mariana

Brasileira Régia e holandesa Robeco avaliam que empresa reduziu risco de novos desastres e que acordo de R$ 170 bilhões com autoridades brasileiras é positivo

Gestoras ESG derrubam veto a Vale após acordo de Mariana
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O rompimento da barragem da Samarco, ocorrido em novembro de 2015 em Mariana (MG), é considerado o maior desastre ambiental da história do Brasil. Quase dez anos depois, a brasileira Vale e a inglesa BHP, controladoras da mineradora, fecharam um acordo de R$ 170 bilhões com autoridades brasileiras para indenização e reparação dos danos. 

O desastre matou 19 pessoas e levou mais de 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos tóxicos para o Rio Doce, importante curso d’água da região Sudeste e, ironicamente, o rio que deu nome à Vale – a companhia retirou o “Rio Doce” do nome em uma reformulação da marca em 2007. 

Referências na gestão de investimentos sustentáveis, a brasileira Régia e a holandesa Robeco avaliaram o acordo como positivo e que a empresa reduziu o risco de novos desastres. Por isso, derrubaram o veto a investimentos na Vale. Elas haviam proibido novas aplicações na mineradora depois que um novo rompimento de uma barragem da empresa ocorreu em 2018, desta vez em Brumadinho (MG). 

“Quando falamos de perda de vidas e paisagens únicas, não existe compensação”, diz José Pugas, sócio e diretor de sustentabilidade da Régia Capital, gestora com R$ 5 bilhões sob gestão, recém-criada da parceria de JGP e BB Asset. “O que existe é um ponto mínimo consensual de retratação, em que as partes se sintam contempladas, ouvidas e indenizadas pelo que pode ser reconstruído. Como todas as partes celebraram esse acordo, esse ponto mínimo de consenso foi alcançado.”

O acordo foi assinado em 25 de outubro pela Samarco, responsável pela barragem de Mariana, suas controladoras (Vale e BHP), Advocacia-Geral da União (AGU), governos de Minas Gerais e Espírito Santo, Procuradoria-Geral da República (PGR) e Defensoria Pública da União, Ministérios Públicos de MG e do ES e Defensorias Públicas dos dois estados. A adesão de municípios e vítimas ao acordo é voluntária. 

Do valor total, R$ 100 bilhões serão destinados para a União, os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e municípios para projetos ambientais e socioeconômicos. Outros R$ 32 bilhões serão para recuperação de áreas degradadas, reassentamento de comunidades e indenizações às pessoas atingidas – as individuais são de R$ 35 mil, subindo para R$ 95 mil para pescadores e agricultores. Os R$ 38 bilhões restantes foram empenhados antes do acordo em ações de reparação dos danos, por meio da Fundação Renova.

O acordo é o maior da história envolvendo reparação de danos ambientais no Brasil. 

“Nossa avaliação é positiva tanto sobre o acordo quanto sobre os esforços da empresa para melhorar a gestão de barragens de rejeitos, sobre como trabalharam com as comunidades afetadas e sobre como foram capazes de restaurar a confiança dos investidores de que são capazes de mitigar esses riscos”, diz Peter van der Werf, diretor de engajamento da Robeco.

O comitê de investimentos da gestora holandesa, que tem 190 bilhões de euros sob gestão, aprovou o retorno da Vale ao rol de ativos em que a gestora pode investir, tanto em ações quanto em dívidas emitidas pela mineradora. 

“Excluímos a Vale por cinco anos por conta dos desastres de Mariana e Brumadinho. Desde o início do ano, trabalhamos para testar nossas suposições e as evidências são de que a empresa resolveu as violações que levaram a sua exclusão. O acordo foi um fator importante”, diz van der Werf. 

Engajamento com a empresa

As gestoras tiveram um extenso trabalho de engajamento com a Vale nos últimos anos, de forma individual e coletiva. 

“Como investidores temos uma corresponsabilidade fiduciária. Nós tivemos um prejuízo financeiro com a desvalorização da ação, mas não tivemos perdas de um familiar, uma casa de infância, um estilo de vida”, diz Pugas, da Régia. “Temos o dever de defender os stakeholders que foram afetados e com quem tivemos uma corresponsabilidade.”

A equipe da JGP (antes da joint venture com a BB Asset) visitou os locais dos desastres logo após o ocorrido e nos anos seguintes. Se manteve em contato com os atingidos e com a empresa e fez a ponte para que outros investidores, nacionais e internacionais, se engajassem para pressionar pela resolução dos problemas e prevenir futuras catástrofes.

Um deles foi o Local Authority Pension Fund Forum (LAPFF), grupo de fundos de pensão britânicos que administram 350 bilhões de libras. Representantes da organização visitaram o Brasil em 2022 e fizeram uma diligência pelos locais em que as barragens romperam.  Ao fim, participaram de uma reunião com a Vale e outros investidores organizada pela JGP. 

“O que a LAPFF viu e ouviu no Brasil foi esclarecedor, mas raramente encorajador”, disse a organização no relatório sobre a visita. O texto destacou os sinais de progresso e a disponibilidade da empresa para discutir os problemas com os investidores, mas demonstrou, na época, preocupação na oitiva das comunidades afetadas e nas barragens de alto risco que eram maiores do que a de Brumadinho, uma barragem relativamente pequena, e cujo rompimento seria “absolutamente devastador”. 

Em resposta aos desastres, a Vale iniciou em 2019 um programa de descaracterização de barragens a montante. Nesse tipo de construção, conforme a barragem fica cheia, vai sendo ampliada para cima com o uso do próprio material descartado no processo de mineração, o rejeito.

Das 30 barragens previstas dentro do programa, a Vale eliminou 16 até agora. Das 14 restantes, três são classificadas como de categoria de alto risco de colapso e as demais como de baixo risco, segundo relatórios de agosto da mineradora. Todas são classificadas como de alto risco para “potencial de dano ambiental”. A meta da companhia é, até o fim de 2025, não ter nenhuma estrutura em nível máximo de emergência. 

“Percebemos uma melhoria sensível na gestão de riscos da empresa. A cultura da empresa é hoje muito mais atenta aos riscos e aos impactos. É muito mais minuciosa do que aquela empresa na qual ocorreram os desastres de Brumadinho e Mariana”, diz o diretor da Régia.

Ele observa, porém, que ainda há passivos e um caminho a ser percorrido. Por conta disso, muitos investidores internacionais que desinvestiram da Vale ainda estão na espera da eliminação das barragens classificadas como de risco alto para voltar a apostar na mineradora. “As barragens estão sendo descaracterizadas, mas ainda assim elas existem, há um risco”, diz Pugas. 

Após cinco anos sem engajamento com a Vale, a Robeco retomou conversas com a empresa em janeiro deste ano. A equipe da gestora teve quatro reuniões com a mineradora, sendo duas presenciais. Além disso, também se reuniu com um ex-membro do conselho de administração da Vale, para ter uma avaliação independente. 

“Preferimos o envolvimento construtivo à exclusão de empresas. Somente se houver evidências muito graves, como no caso da Vale, em que houve negligência com uma segunda grave fatalidade [Brumadinho], é que excluímos. Mas ainda assim, se houver mudanças, ela pode voltar aos nossos investimentos”, diz o diretor da Robeco. 

Ação inglesa

A Vale tem enfrentado litígios climáticos e de direitos humanos também em tribunais fora do Brasil, principalmente em cortes inglesas. A mineradora é ré de uma ação que corre em Londres pelo rompimento da barragem de Mariana. Sua sócia na Samarco, a BHP é uma empresa inglesa. 

Segundo o Financial Times, a ação judicial é movida contra as duas empresas em nome de 620 mil supostas vítimas. Os demandantes incluem 2 mil empresas, 46 municípios e 65 organizações religiosas, que estimam reivindicações em 36 bilhões de libras, antes de juros e inflação.

“Estamos em um contexto em que fica cada vez mais presente a transnacionalidade jurisdicional, em que demandas ultrapassam as fronteiras, seja por uma alegada insuficiência do poder judiciário local, seja pelo dano ambiental não prejudicar apenas um país”, diz Pugas. 

Na sua avaliação, as demandas feitas em cortes britânicas afetaram a negociação e o cálculo econômico do acordo fechado pelas empresas com as autoridades brasileiras. 

“Temos dificuldades para calcular o impacto de violação de direitos humanos e de desastres ambientais na performance da empresa. No momento que há a litigância climática, isso fica muito claro. Eu consigo precificar no ativo qual o risco ele está exposto. É muito difícil agora qualquer um da Faria Lima julgar que não tem parâmetro para aferir qual é o impacto financeiro”, diz o diretor da Régia. 

Na Robeco, a avaliação é de que a ação em Londres traz um risco financeiro para a Vale e seus investidores, mas que isso não é uma razão para manter o veto ao investimento na empresa.

Na assinatura do acordo brasileiro, o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso, deu um recado à corte inglesa: tragédias brasileiras serão punidas no Brasil. “Tragédias não podem ser tratadas como investimento financeiro. Não faz bem à causa da humanidade a monetização da desgraça”, afirmou. “Seria muito ruim se a solução viesse de fora do Brasil.”

Barroso enviou uma notificação à Corte da Inglaterra sobre o acordo assinado pelas empresas com as autoridades brasileiras. Ele não extingue a ação inglesa, mas há quem avalie que esvazie o julgamento.