Duas altas lideranças do Pacto Global da ONU no Brasil estão sendo acusadas de assédio moral por 12 pessoas que trabalham ou trabalharam na organização, iniciativa das Nações Unidas para engajar empresas no desenvolvimento sustentável, com metas sociais e ambientais.
Os acusados são o CEO, Carlo Linkevieius Pereira, e o diretor de estratégia, Otávio Toledo.
O Reset teve acesso ao conteúdo da denúncia, um documento com 115 páginas, e ouviu uma das denunciantes, que falou sob a condição de anonimato. O caso foi revelado pelo UOL.
Feita por 11 mulheres e 1 homem, a denúncia principal é de assédio moral sistemático e traz relatos de situações de sonegação de informações, descrédito privado e público, difamação, manipulação, tratamento de silêncio, exposição, humilhação e gritos. Também cita episódios de violência e discriminação relacionados a gênero e raça.
As denunciantes fizeram, primeiramente, reclamações individuais nos canais internos da organização, às lideranças e ao RH. Sem as respostas e a apuração esperadas, deram entrada com uma denúncia coletiva no Ministério Público do Trabalho em São Paulo. Pelo processo padrão, o MPT deve colher informações preliminares, fase que está em curso, para, então, acolher ou não a denúncia.
Pereira nega as acusações. Toledo não respondeu ao pedido de posicionamento da reportagem. Ambos foram afastados de suas funções por decisão do conselho de administração do Pacto no Brasil.
A denúncia coletiva também foi encaminhada para a organização.
“Em conjunto, após conversarem entre si e identificarem que, de fato, essas questões eram recorrentes, tinham características similares na forma de abordagem, as vítimas decidiram por fazer uma denúncia conjunta nessas duas frentes”, diz Juliana Bertholdi, advogada e porta-voz do grupo de denunciantes.
O Pacto Global Brasil diz que tomou conhecimento da denúncia ao MPT por meio de um e-mail recebido no dia 17 de outubro e que imediatamente adotou medidas para “garantir um processo de apuração íntegro, independente e seguro”, diz nota enviada pela sua assessoria de imprensa.
A apuração está sendo feita por um escritório de advocacia externo e supervisionado por um comitê especial criado para essa finalidade, informou a organização. O escritório contratado foi o Machado Meyer, apurou o Reset.
O processo é feito sob sigilo, uma prática comum desse tipo de ação. “Respeitando a legislação, o processo de apuração de denúncias é absolutamente sigiloso para preservar a confidencialidade e a segurança de todos os envolvidos”, diz a nota da organização, que tem 100 funcionários no país.
A advogada do grupo diz que algumas vítimas já foram ouvidas pela auditoria externa, que até o momento ocorre com tranquilidade. “O fato de terem retirado isso do bojo do Pacto deixa as vítimas um pouco mais seguras. Houve a garantia da auditoria externa de que todo o procedimento aconteceria preservando a identidade dessas vítimas, porque parte delas ainda está trabalhando no Pacto”, diz Bertholdi.
Composto por membros de empresas signatárias, o conselho de administração do Pacto Global Brasil colocou de férias os dois executivos “para evitar questionamentos a respeito da lisura e imparcialidade da apuração”.
Segundo o site do Pacto Global da ONU, 2392 empresas são signatárias da iniciativa no país. Quem o integra assume a responsabilidade de contribuir para o alcance dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS).
As denúncias
O grupo que alega situações de assédio reuniu 20 denúncias individuais feitas entre 2022 e 2024. Cinco foram realizadas no canal interno de denúncias do Pacto Global Brasil, outras cinco diretamente para Carlo Pereira, quatro para as lideranças das denunciantes e RH, duas para lideranças, duas para o RH e duas para a matriz do Pacto Global da ONU em Nova York.
Elas foram sistematizadas num documento segundo o canal de denúncia, a (o) denunciante, se houve resposta, qual a resposta e se houve retaliação.
O Pacto Global Brasil confirma que nos últimos dois anos recebeu cinco denúncias relacionadas ao tema assédio moral, sendo uma em 2022 e quatro em 2023. Segundo a organização, a denúncia coletiva recebida no último dia 17 contém alegações e elementos novos, que não haviam sido submetidos ao canal interno no passado.
“Como as vítimas não tiveram notícia do desdobramento dessas denúncias, e as lideranças denunciadas continuaram nos cargos, sem qualquer tipo de alteração, sem qualquer informação de que teria havido algum encaminhamento, elas optaram por esses outros dois caminhos”, afirma a advogada do grupo.
Segundo a denunciante que falou em condição de anonimato, haveria um modo operante de assédios sistemáticos do diretor Otávio Toledo no exercício de suas funções. Ela relata que, ao reportar o comportamento para Pereira, superior hierárquico direto de Toledo, a primeira reação dele foi de acolhimento e promessa de que tomaria providências, mas o que se sucedeu foi sua exposição em reuniões de equipe, sem qualquer contexto, o que a deixou intimidada – ela relata ter presenciado situações similares e ouvido relatos parecidos de outras denunciantes.
Procurado pelo Reset, Pereira enviou seu posicionamento por meio de uma assessoria de comunicação pessoal. “Minha agenda é pautada pela inclusão e diversidade. Quem esteve ao meu lado sabe que é desta forma que atuo. Portanto, nunca corroborei com um ambiente de exclusão, racismo ou violência de gênero como se supõe na presente denúncia”, diz em nota.
Ele diz que não teve acesso ao teor completo das denúncias, mas que está “absolutamente tranquilo” com o processo de investigação, pois sua conduta está alinhada aos princípios éticos que norteiam sua carreira. “Me preocupa, no entanto, o impacto desproporcional à reputação de pessoas sérias e dedicadas num processo interno e ainda sem conclusão.”
Denúncias improcedentes
Das cinco denúncias relatadas no canal interno do Pacto Global, quatro se referem a Toledo, duas de 2022 e duas de 2023. Todas elas foram consideradas improcedentes.
Em todos os casos, as respostas da organização (reproduzidas integralmente na denúncia, segundo a advogada do grupo) foram similares, dizendo que uma apuração interna havia sido conduzida pelo Comitê de Integridade e que não haviam sido identificados “indícios de atos ilícitos ou violações das normas de conduta do Pacto” e “provas ou evidências que possam corroborar as suspeitas levantadas na denúncia”.
O CEO do Pacto diz, em seu posicionamento, que o comitê de integridade é composto por profissionais “altamente qualificados”, chief compliance officers de empresas e sócios de escritórios de advocacia.
“Acredito na total lisura e isonomia deste mecanismo. Importante destacar que todo o processo ocorre em sigilo e absolutamente nenhuma informação chega ao conhecimento de quadros como o do CEO”, afirma.
Das cinco denúncias feitas a Pereira relatadas no processo, três mencionam diretamente Toledo: a primeira fala sobre “dificuldades que estavam prejudicando o clima organizacional e a da moral da equipe”; a segunda menciona equipes afetadas por uma “liderança tóxica” do diretor; e na terceira, segundo a pessoa denunciante, Pereira teria dito que era “o maior prejudicado pela situação”, que gostaria de demitir Toledo, mas que outras instâncias de governança não teriam permitido.
A denúncia coletiva é direcionada a Otávio Toledo e Carlo Pereira, mas indiretamente a toda a diretoria atual, que segundo as denunciantes “é cúmplice de suas atitudes e corrobora, abafa e promove um ambiente sistêmico de assédios e inseguranças”.
O documento diz que a atitude da diretoria tem sido a de minimizar os diversos relatos e pedidos de ajuda. Relata que os casos são tratados como fofocas ou ironizados como “burnout por qualquer coisa”.
Na nota, o Pacto Global diz que qualquer afirmação sobre a denúncia é prematura. “Desde já reiteramos o nosso absoluto compromisso com a ética e que, em caso de comprovação de atos que violem as leis ou os nossos valores e princípios norteadores, haverá pronta responsabilização dos envolvidos.”
O resultado que as vítimas buscam é o de responsabilização e modificação do ambiente de trabalho do Pacto Global no Brasil. “Não houve por nenhuma delas uma demanda de reparação financeira. Todas trazem como preocupação principal que o ambiente do Pacto seja resgatado, por entenderem e acreditarem no impacto da organização”, diz a advogada.