Enquanto mais de 19 milhões de brasileiros passam fome, o país desperdiça 26 milhões de toneladas de comida por ano.
Não é um problema exclusivo do Brasil. Segundo a FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), um terço de todos os alimentos produzidos no mundo vai parar no lixo.
Uma parte significativa dessa comida pode ser salva. Além da obrigação moral de evitar o desperdício, o impacto ambiental e econômico é imenso.
Aumentar o aproveitamento significa menos necessidade de terras e água para produzir. E, na prática, é uma questão de eficiência para toda a indústria. De agricultores a indústrias, varejistas e restaurantes, todos saem no prejuízo.
Segundo a ONU, o desperdício de 1,3 bilhão de toneladas de alimentos custa US$ 750 bilhões por ano para a economia global.
Grandes empresas e startups do mundo inteiro — incluindo alguns unicórnios — tentam atacar o problema pela via dos negócios. E esse movimento também começa a ser notado no Brasil.
O Instituto BRF, responsável pelos investimentos sociais da processadora de alimentos, acaba de anunciar as selecionadas para um programa de aceleração de startups que combatem perdas e desperdício de alimentos.
Oito companhias farão parte do programa, batizado de Ecco Comunidades. São negócios jovens. Um dos mais antigos, a Connecting Foods, tem somente cinco anos de vida. Os outros ainda estão dando os primeiros passos.
Startups de combate ao desperdício ainda são uma relativa novidade no Brasil. Apenas 59 se inscreveram para o programa. Chamadas desse tipo em outros setores costumam atrair centenas de companhias iniciantes.
“Foi uma seleção muito mais qualitativa do que quantitativa, mas que teve bons candidatos”, diz Anna de Souza Aranha, diretora do Quintessa, uma aceleradora de impacto e parceira da BRF no projeto. “Diante do tamanho do problema, o número de startups ainda é incipiente.”
Além da filantropia
A ação faz parte das estratégias de responsabilidade socioambiental da BRF. O Instituto BRF existe desde 2012 e sempre se concentrou em filantropia nas áreas em que a empresa está presente. O envolvimento com as startups é uma iniciativa nova.
“Começamos a conversar com o Quintessa para entender melhor esse universo de impacto”, diz Barbara Azevedo, gerente do instituto. “Queríamos testar um modelo diferente de trabalhar com negócios sociais.”
O objetivo é desenvolver soluções que vão do agricultor ao consumidor final, passando pelo atacadista e pelos supermercados.
A Connecting Food, de São Paulo, oferece um sistema para administrar alimentos que podem ser doados, mas que já perderam o valor de mercado (estão próximos do vencimento ou fora do padrão, por exemplo). Entre seus clientes estão, por exemplo, mais de 400 lojas do Pão de Açúcar.
A empresa mapeia as instituições que podem receber a doação, oferece treinamentos e organiza as informações para os varejistas.
“Nosso olhar não é filantrópico, mas sim uma prestação de serviço para parceiros que tenham uma preocupação com o impacto social e ambiental”, diz Alcione Silva, fundadora e CEO da Connecting Food. “Todos os dias preciso explicar que esse é um tema importante.”
Impacto nacional
Além da Connecting Food, foram selecionadas Entendi, ManejeBem e Sumá (capacitação de pequenos produtores de alimentos); Whywaste (com soluções para o comércio); Eats For You (plataforma de ecommerce para cozinheiros domésticos); Gastronomia Periférica (escola de culinária em comunidades carentes); e Lemobs, que trabalha com gestão da alimentação escolar.
Três são de São Paulo, duas do Rio de Janeiro, duas de Santa Catarina e uma do Paraná. “Esses negócios ainda estão muito no Sudeste e no Sul, mas temos muita oportunidade de desenvolvimento em outros lugares do país”, diz Azevedo, da BRF.
Para dar um empurrãozinho, a empresa dividiu seu programa em duas fases: a primeira de aceleração, com mentorias e workshops, e a segunda com a implementação de soluções em munícipios em que a BRF está presente (em MS, MT, GO e MG).
Nessa etapa, cinco das oito startups vão receber R$ 90 mil para colocar o projeto para rodar em parceria com organizações da sociedade civil que já atuam nos municípios mapeados.
“Nós temos o compromisso de investir nas comunidades em que atuamos. Queremos educar sobre o desperdício e seus vários desdobramentos socioeconômicos e ambientais para essas cidades”, diz a gerente do instituto.
Uma situação inaceitável
Existem dois grandes vetores para o problema do mau aproveitamento da comida. Um deles é a perda: alimentos são inutilizados na colheita, no armazenamento ou no transporte por falta de tecnologia ou infraestrutura adequadas.
O outro é o desperdício, causado pelas sobras, pelo vencimento ou mau aproveitamento dos alimentos. E legumes, frutas e verduras são descartados por estar fora do padrão ou apresentar imperfeições cosméticas.
“Não é mais aceitável essa quantidade de desperdício. Precisamos repensar todo o ecossistema e ver que há grandes oportunidades nesse alimento, que investir em redução de desperdício é pensar em como transformá-lo em dinheiro”, diz Heloisa Guarita, sócia-fundadora da RG Nutri, empresa de consultoria para a indústria de alimentos.
Guarita, que é nutricionista de formação, ajuda grandes empresas a encarar a sustentabilidade do ponto de vista do fim do desperdício. “Queremos chamar atenção e encher a paciência da indústria.”
Ela também atua na pessoa física, como investidora-anjo. Com cheques que variam entre R$ 20 mil e R$ 150 mil, ela já adicionou cerca de 10 negócios à sua carteira de investimentos.
São empresas voltadas para agricultura, alimentação, bem-estar e saúde. Agora, a ideia é direcionar esses investimentos para novos negócios focados no desperdício.
As perdas na ponta
A Food to Save é uma startup que criou um aplicativo para evitar um outro tipo de perda muito comum: a dos alimentos preparados.
O sistema é bem simples. O cliente escolhe padarias, docerias ou restaurantes da sua região e faz um pedido ‘no escuro’. Normalmente no final do dia, ele pode ir buscar um pacote surpresa com doces ou salgados prestes a vencer — com desconto de até 70%.
A empresa lançou o serviço em abril deste ano e já tem mais de cem estabelecimentos cadastrados na região metropolitana de São Paulo. O objetivo de Lucas Infante, fundador e presidente da Food to Save, é chegar a 600 até o fim do ano.
“Parte do nosso trabalho é educar o consumidor sobre a importância de evitar o desperdício”, afirma Infante.
E uma das empresas iniciantes escolhidas pela aceleradora do Instituto BRF quer fazer decolar um outro lado dos serviços de alimentação — as quentinhas feitas em casa.
A Eats for You é uma espécie de Uber da comida caseira. A empresa criou uma plataforma digital que permite que cozinheiras e cozinheiros ‘coloquem água no feijão’ e vendam marmitas para quem não tem tempo e sente falta do almoço na casa da mãe.
“O objetivo é resolver dois problemas: levar uma alimentação saudável e a preço justo aos consumidores e, do outro lado, conseguir gerar renda para muitos desempregados no país”, diz Nelson Andreatta, CEO da Eats For You.
A startup diz já ter gerado mais de R$ 2 milhões em renda para os cozinheiros domésticos desde sua fundação, em 2017.
O negócio já recebeu duas rodadas de investimentos, com aportes de fundos como GV Angels, de ex-alunos da Fundação Getúlio Vargas, e da FEA Angels, de profissionais e empresários formados pela Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo.
“Já testamos a expansão para outros Estados, mas, para escalar, precisamos de investimento”, afirma Andreatta.
Unicórnios do desperdício
No exterior, o segmento de startups que lidam com o problema do desperdício de comida vem recebendo muita atenção – e dinheiro – dos investidores.
A americana Misfit Market, que vende frutas e legumes ‘feios’, já recebeu US$ 527 milhões em investimentos e tem um valor de mercado estimado em US$ 2 bilhões.
A Apeel, também americana, desenvolveu um produto de base vegetal que promete dobrar a vida útil de frutas e legumes. A substância mantém a umidade natural dos alimentos e permite que o oxigênio escape, sem afetar o cheiro e o sabor dos produtos.
Fundada em 2012, Apeel anunciou uma série E de US$ 250 milhões e também é avaliada em US$ 2 bilhões.
(Colaborou Rodrigo Loureiro)