Desde o colapso da barragem de Brumadinho (MG), no começo do ano passado, a palavra mais associada à Vale tem sido reparação. Com a perda (irreparável) de 281 vidas e extensos danos ao meio-ambiente, não poderia ser diferente.
A falha na gestão de riscos foi tão grosseira que espantou todo tipo de investidor, mas impactou principalmente aqueles que incluem filtros ambientais, sociais e de governança (ESG, na sigla em inglês). O rating socioambiental da Vale foi rebaixado a ‘tóxico’ e a companhia foi banida das carteiras de fundos de investimento e de pensão, especialmente os europeus.
O efeito dessa debandada se reflete, em boa medida, no tamanho do desconto das ações da mineradora brasileira em relação às de seus pares na bolsa.
Nos 12 meses que antecederam o desastre, esse desconto, medido pelo indicador EV/Ebitda, chegou a zero em alguns momentos, graças à reforma societária e de governança proposta pelos controladores, uma demanda antiga do mercado.
Depois do acidente, disparou para a casa de 20% a 30% — e mais recentemente tem ficado no topo desse intervalo. A mesma coisa vale para a BHP.
Reconquistar a confiança desses investidores ainda deve tomar muito tempo. Em relatório divulgado no fim do ano passado, depois de ouvir 40 investidores, o Citi concluiu que metade do desconto da Vale em relação a BHP pode ser atribuído a fatores ESG e que deve levar anos para eliminá-lo completamente.
Na Sustainalytics, uma das principais agências de rating ESG do mundo, a mineradora ainda aparece com “risco severo” de registrar perdas financeiras ocasionadas por fatores ASG, segundo um relatório do começo de abril.
De acordo com a agência, o risco até caiu nos últimos 12 meses, mas não o suficiente para tirá-la da categoria mais perigosa. Sua nota é a pior entre as pares. Anglo American e Rio Tinto são consideradas de “risco médio”, enquanto BHP tem “risco alto”.
Materialidade (ou o foco no que importa)
No fim de abril a empresa publicou seu relatório de sustentabilidade 2019, em que diz ter incorporado os aprendizados pós-Brumadinho. O material foi recebido sem grande entusiasmo. Investidores e analistas consultados consideraram o relato prolixo, pouco objetivo e carente de dados concretos.
“O relatório parece uma carta de boas intenções. A empresa ainda peca na objetividade e não tem clareza”, observa o analista de um grande banco.
Um portal ESG colocado no ar em dezembro causou melhor impressão. Um dos pontos mais relevantes é uma grande tabela em que estão compilados 52 gaps em ESG que a companhia identificou depois de estudar a metodologia dos seus principais provedores de informações como Glass Lewis, MSCI e Sustainalytics.
De forma geral, os investidores reconhecem os esforços da mineradora. “A Vale está indo na direção certa. Em algumas áreas, como de emissão de carbono, fixou metas claras. É um processo complexo e que leva tempo e eles estão abertos a receber feedbacks”, diz Márcio Correia, sócio de renda variável da gestora JGP, uma das poucas brasileiras a reduzir suas posições em Vale de forma duradoura depois do acidente.
Mas, ressalva Correia, a companhia ainda precisa ser mais clara e contundente em relação a seus riscos mais materiais.
Daniela da Costa, gestora de portfólio da casa de fundos holandesa Robeco, vai na mesma linha: “Emissão de carbono é importante, mas não é o mais importante para a Vale. O mais importante é gestão de resíduos, gestão de fluidos, risco ocupacional e relacionamento com comunidades. Isso é o mais material. Essa parte é que está carecendo de metas e foi exatamente onde tiveram o acidente.”
Desde o desastre, a Robeco, que gere 170 bilhões de euros e é referência em ASG, excluiu a Vale de seus fundos com gestão ativa e, por essa razão, não tem participado dos engajamentos com a empresa. Costa vê uma evolução e diz esperar que a companhia saia da lista de exclusão em alguns anos. “A empresa é boa, sofreu muito e está aprendendo a lidar. Mas precisa entender onde estão seus riscos ambientais. E ainda me pergunto se a Vale entende”, completa.
A Vale respondeu a todos os questionamentos do Reset por escrito, mas não concedeu entrevista para esta reportagem.
A grande barreira: as barragens
A ação mais prática adotada para mitigar o risco de repetir os colapsos ocorridos em Mariana (2015) e Brumadinho é o chamado descomissionamento das barragens de rejeito que empregam a técnica conhecida como de “alteamento a montante”. Nela, conforme a barragem fica cheia, vai sendo ampliada para cima com o uso do próprio material descartado no processo de mineração, o rejeito.
A empresa tem dez barragens com essa técnica no país, todas inativas, e provisionou US$ 2,67 bilhões para eliminá-las por completo e reintegrá-las à natureza. O prazo inicial dado pela Agência Nacional de Mineração para essa eliminação era 2023, mas foi estendido para 2025 e 2027, a depender do tamanho das barragens.
A companhia também se comprometeu a desenvolver tecnologias alternativas às barragens de rejeitos até 2023. “É uma boa meta, mas o prazo é muito longo”, diz Costa, da Robeco.
No início deste ano, a Vale adotou entre as novas medidas de segurança em barragens a figura do “engenheiro de registros” (‘engineer of record’), atendendo a uma recomendação da associação de operadores de barragens do Canadá, que tem as políticas consideradas mais rigorosas do mundo.
Trata-se de empresa de engenharia contratada para dar uma opinião independente sobre a estabilidade das represas com periodicidade mensal. Até então, havia apenas a auditoria externa a cada seis meses. Além do monitoramento constante, o engenheiro de registro tem acesso direto à diretoria da empresa e pode inclusive recomendar a parada da operação, o que contorna o risco de pressão das áreas operacionais, que precisavam de um laudo favorável para continuar funcionando.
Desde o ano passado, a empresa também adotou parâmetros mais rígidos para avaliar o nível de alerta das represas, que disparam medidas preventivas, como remoção das populações que vivem nas proximidades da estrutura.
Uma outra medida elogiada é a criação de um comitê independente para avaliação de risco de barragens que reporta diretamente para o conselho de administração.
“Eles melhoraram, mas ainda existe o risco, que é bem intrínseco ao negócio deles. Ainda não é uma empresa que recomendo do ponto de vista ASG. E esse diagnóstico é muito com base no modelo de gestão de barragens e auditoria”, diz Cristóvão Alves, analista-chefe da consultoria Sitawi.
No fim do dia, as barragens são consequência da política de resíduos das mineradoras. E no mercado é grande a cobrança sobre uma política da Vale nessa área. “Qual a política da Vale para tratamento de resíduos de mineração? Eu não sei. Eles precisam estabelecer metas claras”, diz um analista de banco.
Esse é justamente um dos gaps ESG identificados pela companhia. Na grande tabela disponível no portal, a companhia informa que até o fim do ano pretende incluir a gestão de resíduos em sua política ambiental e divulgá-la. Não está claro, no entanto, se vai criar indicadores e metas específicas para a área.
Outra frente atacada para reduzir o volume de rejeitos é o investimento em processos de concentração de minério a seco. Hoje, 60% da produção da empresa já é extraída a seco, especialmente nas operações no Norte do país. A meta da empresa é chegar a 70% até 2023. “Poderia chegar a 100%, mas ainda é difícil porque não existe tecnologia para isso”, comenta um analista.
Entre o rompimento das barragens de Mariana e de Brumadinho, a Vale fechou a compra, por US$ 500 milhões, da New Steel, uma startup brasileira que desenvolve justamente um novo processo de mineração a seco.
A espera por um padrão-ouro
A expectativa maior do mercado em termos de segurança de barragens está depositada sobre um novo padrão global, que deve ser anunciado até o fim deste ano. E os analistas se perguntam se e com que velocidade a Vale irá aderir a ele.
A decisão de se criar esse standard global nasceu justamente da pressão de investidores sobre as mineradoras em decorrência do desastre de Brumadinho.
O fundo de pensão da Igreja da Inglaterra (Church of England) e o conselho de ética dos fundos de pensão da Suécia tomaram a dianteira e criaram o Mining and Tailing Safety Initiative para exigir transparência de informações e normas mais rígidas de segurança. Hoje, o grupo reúne mais de 100 investidores com mais de US$ 14 trilhões sob gestão.
Como resposta, dois meses depois da tragédia, o Conselho Internacional de Mineração e Metais (ICMM), que reúne as maiores mineradoras do mundo, se juntou ao Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente (UNEP) e ao Principles for Responsible Investments (PRI) para desenvolver em conjunto esse novo padrão.
À reportagem, a Vale informou que vem participando ativamente da elaboração do padrão e tem o compromisso de atender a ele quando for lançado.
Enquanto esse padrão global não é finalizado, a iniciativa dos investidores conseguiu que 100 empresas, incluindo as maiores, abrissem os dados de quase 2 mil barragens de rejeitos existentes no mundo.
Um portal com a inédita base de dados entrou no ar em janeiro. A Vale foi uma das primeiras a responder e deve atualizar suas informações ainda em junho.
A mesma iniciativa de investidores também trabalha junto da inglesa Catapult, uma organização sem fins lucrativos, para criar um monitoramento independente das barragens por satélite.
“A verdade é que o setor de mineração não estava olhando direito para meio-ambiente. Nos últimos anos, houve foco muito grande dos investidores sobre o setor de óleo e gás, que emite muito CO2, e o setor de mineração foi muito negligenciado”, diz Costa, da Robeco.
Emissões de carbono
Um mês atrás a Vale fez barulho para dizer que estava subindo a barra no combate ao aquecimento global, seguindo o que Rio Tinto e BHP já haviam feito.
Conhecendo o apreço da mídia por cifras, anunciou que investirá US$ 2 bilhões para reduzir em 33% suas emissões de carbono nos escopos 1 e 2 até 2030. O escopo 1 são as emissões diretas da companhia e o escopo 2 representam as emissões indiretas ocasionadas pelo processo produtivo, como o consumo de energia elétrica. A “ambição” é neutralizar suas emissões nos dois escopos até 2050.
Mas ainda ficou devendo metas para o escopo 3, que envolve as emissões de fornecedores e clientes. Na mineração, esse é um aspecto especialmente crítico, porque as siderúrgicas consomem enorme quantidade de energia e são grandes emissoras de CO2.
Consultada, a Vale informou que no segundo semestre deve anunciar uma “ambição” para sua cadeia produtiva, “para induzir clientes e fornecedores a atuarem na mesma direção”.
Para indicar alinhamento da gestão ao novo perfil ESG, a companhia também anunciou que atrelou 20% da remuneração de longo prazo da gerência sênior até o C-Level a metas ambientais, sociais e de governança.
Os investidores gostaram, mas batem na tecla da clareza. “Gostaria que a companhia abrisse essas metas”, comenta um analista, dizendo que é impossível saber qual o grau de dificuldade para atingi-las.
Ao Reset, a Vale informou que as metas “são bastante audaciosas e estão relacionadas a objetivos anunciados publicamente desde o final do ano passado, como tornar-se carbono neutra até 2050, ser autossuficiente em produção de energia limpa até 2030, e recuperar ou proteger 500 mil hectares de área até 2030.”
No quesito de relacionamento com as comunidades onde atua, considerado um risco material de sua atividade, a empresa promete para 2021 criar indicadores de desempenho (KPI) e metas de curto, médio e longo prazos.
Terras indígenas
Um gestor de fundos bastante rigoroso na aplicação de filtros ESG aponta a mineração em terras indígenas como o principal motivo para manter a Vale em sua lista de exclusão.
No portal ESG, a companhia dedicou um espaço a essa questão em “controvérsias”, em que afirma que não desenvolve qualquer atividade de pesquisa ou lavra em terras indígenas no Brasil atualmente, nem considera tais áreas em seus planos futuros de produção. Por essa razão, alega, o polêmico projeto de lei que regulamenta a mineração em terras indígenas, enviado ao Congresso pelo presidente Jair Bolsonaro em fevereiro, não impacta seus negócios.
O problema, opina esse gestor, é que a companhia mantém um discurso dúbio ao informar que tem 72 processos de requerimento de pesquisa em terras indígenas do período em que ainda era estatal. O ideal, diz, é que a empresa oficializasse a retirada desses pedidos, se de fato não tem interesse econômico no longo prazo.
Leniência e mimo
Se os fundos ESG estrangeiros ainda devem levar anos para reconsiderar as ações da Vale, no Brasil imperou o business as usual depois da tragédia. A primeira reação foi de queda das ações e uma chuva de recomendações de venda. Mas a ressaca durou pouco.
Dados coletados pela Bloomberg mostram que, hoje, 75% de 20 analistas (a maioria de instituições brasileiras) estão com recomendação de compra para o papel.
“No Brasil ainda estamos atrás, mas em algum momento o ESG vai ficar significativo”, comenta o analista de um grande banco, que exibe recomendação de compra para o papel em seu último relatório.
No chamado buy side, de modo geral o papel da mineradora voltou a frequentar as carteiras como antes.
Mas Márcio Correia, da JGP, avalia que a leniência com a companhia é ainda maior por parte dos bancos. “Em crédito não falta recurso para a empresa. A pressão é menor do que dos investidores em ações.”
Álvaro Almeida, representante no Brasil da canadense Globescan, que faz pesquisa e consultoria em reputação e sustentabilidade, vai além. “Por causa do seu lastro e influência, a Vale é mimada por todos seus stakeholders e sofre menos pressão do que deveria. A empresa precisa ampliar sua visão para um olhar mais transformador e não apenas reparador.”