Guerra leva fundos e bancos a rever exclusão de armas de políticas ESG

Eis o argumento: equipamentos militares podem ser usados para defesa ou dissuasão. Mas isso é convicção ou conveniência?

Tanque com a bandeira ucraniana em Kiev, capital do país
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Num mundo que ainda define os padrões e métricas de investimentos ESG e que convive com uma gama variada de estratégias possíveis que consideram tais filtros, a exclusão de dois setores controversos por natureza – fumo e armas – do universo de investimentos sempre foi uma das poucas certezas à mão.

Ao menos era assim até duas semanas atrás.

Crenças sobre segurança global perderam a validade quando a Rússia invadiu a Ucrânia, e o mesmo está ocorrendo com uma dessas unanimidades do mundo ESG ­– no mínimo, ela está sendo reexaminado com um novo olhar.

Bombas e mísseis russos mataram mais de 400 de civis até aqui, segundo dados oficiais, mas o número real deve ser muito maior. Mais de 1,7 milhão de ucranianos já fugiram do país.

Armas usadas em operações ofensivas também servem para defesa, e elas são o único recurso da Ucrânia diante da agressão do país vizinho. Será que fabricantes de mísseis antitanques e radares antiaéreos não estão ao menos ajudando a preservar o “S”?

É esse tipo de pergunta que gestores de fundos alinhados à agenda ESG pelo mundo todo estão se fazendo agora. 

“Estamos estudando rever nossa política de exclusão. O mundo mudou completamente e não voltará a ser o mesmo”, diz um gestor brasileiro.

Na Europa, que lidera o mundo no refinamento e na aplicação dos critérios ESG nas finanças ao mesmo tempo em que é palco do conflito, as revisões já começam a se concretizar. 

O SEB, uma das maiores instituições financeiras da Suécia, anunciou na semana passada uma mudança em sua política de não-investimento em fabricantes de armas, dada a nova realidade geopolítica do continente.

A partir de 1º de abril, seis de seus fundos poderão incluir papéis de companhias que obtenham mais de 5% de suas receitas com negócios de defesa. O filtro havia sido instituído um ano atrás.

Na Alemanha, o Commerzbank também indicou uma possível mudança de orientação, especialmente depois que o governo do país anunciou uma injeção de 100 bilhões de euros nas forças armadas do país.

“Está claro que haverá mais investimentos na indústria aqui na Alemanha, e [no setor de defesa] todos são nossos clientes”, afirmou o presidente da instituição, Manfred Knof.

É um mundo completamente diferente do de alguns meses atrás, como afirmou ao Financial Times Armin Papperger, CEO da Rheinmetall, maior companhia do setor de defesa da Alemanha. “Queriam nos banir, dizendo que somos um setor do mal, nocivo”, disse ele.

Sob a névoa da guerra

As fronteiras que delimitam os parâmetros ESG nunca foram absolutamente claras. E elas não existem no vácuo.

Considere projetos de gás natural e usinas nucleares. Com o argumento de que essas duas fontes de energia são essenciais para que se chegue a uma economia 100% livre de carbono, a União Europeia propôs que ambas possam também ser chamadas de verdes (dentro de certas condições).

Apenas um mês atrás, houve uma enorme controvérsia em relação às brechas que podem permitir a inclusão de gás natural e energia nuclear entre os investimentos aptos a receber um selo verde dentro da chamada taxonomia de investimentos ambientalmente responsáveis.

Mas, diante do imperativo de acabar com a dependência das importações da Rússia, o clima mudou.

O mesmo argumento vem sendo usado pelo lobby armamentista agora que o bloco se debruça sobre uma outra taxonomia, que olha para o lado social.

“Apelo para que a UE reconheça a indústria da defesa como uma contribuição positiva para a ‘sustentabilidade social’ dentro da taxonomia ESG”, afirmou o BDSV, grupo que defende o setor na Alemanha.

O documento de trabalho em discussão, publicado há uma semana, exclui cigarros e produtos associados a trabalho forçado. O trecho relacionado a defesa é vago: diz apenas que os investidores devem se basear em “protocolos e convenções internacionais existentes.”

Uma das coordenadoras do grupo que elabora o conjunto de regras afirmou ao site Responsible Investor não haver interpretação possível que permita a inclusão de armas entre os investimentos “sociais”. O texto final, entretanto, cabe à Comissão Europeia.

Uma decisão ainda deve demorar alguns anos, mas a ambição dos europeus é que seu modelo de regulação seja o “padrão ouro” global – e o conflito que se desenrola no Leste Europeu certamente terá influência no que vier a ser aprovado.

Oportunismo?

Charles Armitage e Samuel Burgess, dois analistas do Citi, argumentam que a maré já está virando. A guerra na Ucrânia vai levar a maioria dos países europeus a aumentar seus orçamentos de defesa – e os fundos ESG vão querer aproveitar essa onda.

“As tensões devem lembrar os investidores que não podemos dar como certas sociedades livres e seguras. A defesa deve ser cada vez mais vista como uma necessidade que facilita a empreitada ESG”, afirmam eles.

É importante notar que o termo defesa é um eufemismo, já que muitos dos equipamentos são projetados para causar destruição e mortes em massa.

E, por mais sofisticados que sejam os mecanismos de controle na hora da venda, não há garantias de que os armamentos não acabem nas mãos erradas ­– haja vista o que o Talibã herdou depois da saída desastrada dos americanos do Afeganistão.

Fábio Alperowitch, CEO da gestora Fama Investimentos, acredita que haverá espaço tanto para quem tem uma postura mais dogmática em relação à indústria de armas ­– grupo no qual ele se inclui – quanto para os mais “liberais”.

“Não invisto em empresas que façam mal para outras pessoas”, afirma. Ele não compra ações da Embraer, por exemplo, apesar de o negócio de defesa responder por apenas 15% das receitas da companhia.

Um dos problemas intrínsecos da adoção de critérios ESG é que eles podem ser dobrados de acordo com a conveniência, afirma o gestor.

“A empresa hoje, março de 2022, vende equipamentos para a Ucrânia. Mas e amanhã? Não dá para ser casuístico”, diz Alperowitch. 

O mesmo poderia se dizer de fundos que estabelecem limites em relação ao negócio de armamentos dentro do bolo total das receitas da companhia, diz o gestor. “Você escolhe o número mais conveniente.”

A perspectiva de fazer dinheiro certamente também entrará na conta. O índice europeu STOXX de companhias do setor aeroespacial e de defesa estava ontem em alta de 5% este ano (e de 14% em relação ao ponto mais baixo dos últimos 12 meses).

Nos Estados Unidos, a apreciação do mesmo setor dentro do S&P 500 foi ainda maior: 11% em 2022 (e 23% em comparação com o ponto mais baixo dos últimos 12 meses).