ECONOMIA CIRCULAR

Por que importar resíduos ameaça a cadeia de reciclagem

Decreto permite que materiais como vidro, PET e papelão sejam comprados de outros países; catadores pedem revogação da norma

Por que importar resíduos ameaça a cadeia de reciclagem

O desafio da reciclagem no Brasil é grande: apenas 8% das 81 milhões de toneladas de resíduos urbanos gerados anualmente são reciclados. Um novo decreto que libera a importação de diversos tipos de materiais recicláveis deve tornar esse problema ainda maior. 

O setor de recicláveis aponta que a medida pode derrubar os preços desses produtos no mercado local, desestruturando uma cadeia ainda pouco desenvolvida e que tem na ponta trabalhadores já precarizados – os catadores chamam a norma de “decreto da fome” e pedem sua revogação. 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou em janeiro uma lei que altera a Política Nacional de Resíduos Sólidos e proibiu a importação de resíduos sólidos – basicamente, lixo reciclável. Como parte da regulamentação, porém, o decreto 12.438, publicado em 17 de abril, trouxe uma lista extensa de produtos que se enquadram como exceção à lei e, portanto, podem ser importados: vidro, determinados plásticos PET, papéis, papelão e resíduos de alumínio, aço e ferro. 

Por serem materiais recicláveis amplamente disponíveis no mercado interno, no qual trabalham mais de 3 mil cooperativas de catadores no país, a medida surpreendeu diferentes grupos do setor.

“Não houve clareza dos critérios [do decreto] e a impressão que deu é de que setores com maior influência conseguiram incluir materiais [que gostariam de importar], o que deixa o processo sem muita transparência sobre esses materiais estarem ou não sendo devidamente avaliados”, diz Adriano Augusto, professor do Núcleo de Sustentabilidade da Fundação Dom Cabral (FDC). 

O decreto diz que critérios como viabilidade econômica, disponibilidade para aquisição no mercado nacional e impacto da importação nas atividades de cooperativas foram usados para determinar os itens que poderão ser importados. 

Ele, no entanto, abrange materiais que já estão na cadeia de catadores locais, o que abre abre um precedente perigoso e pode atrapalhar o desenvolvimento da reciclagem no país, diz Fábio Brasiliano, diretor de desenvolvimento sustentável da Abihpec (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos). “Temos que investir em profissionalização, maquinários e tecnologia para que não precisássemos permitir essa importação de papel, de alguns tipos de vidro e do próprio aço e alumínio.”

Diante da reação ao decreto, o governo federal se reuniu semana passada com associações de catadores. De acordo com o Metrópoles, Lula teria decidido revogar o decreto que libera as importações – até o momento ela não saiu no Diário Oficial da União. Segundo a Associação Nacional dos Catadores (Ancat), que esteve na reunião, o tema ainda está em discussão. 

O projeto de lei que proibiu a importação foi apresentado na Câmara dos Deputados em outubro passado, aprovado pelo Senado em dezembro e sancionado duas semanas depois. “Essa legislação nasceu em tempo recorde. O problema, na minha visão, está em não ter aprofundado durante a discussão do PL todos os impactos econômicos e técnicos para os catadores e para a cadeia de suprimentos da indústria”, observa o diretor da Abihpec. 

Setores da indústria que usam resíduos optam por comprá-los no exterior pela falta do produto no mercado interno ou pelo custo mais baixo do que o material reciclável no Brasil. O governo federal aumentou as taxas de importação de determinados produtos de plástico e vidro, por exemplo, depois de terem sido reduzidas – ou até zeradas – na gestão anterior. 

E o preço?

No ano passado, o Brasil comprou ao menos 44 mil toneladas de lixo, segundo dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio (Mdic). O volume é baixo comparado à produção nacional, mas pode causar prejuízos significativos para o avanço do setor no longo prazo, diz Rafael Tello, vice-presidente de sustentabilidade na Ambipar e diretor científico no Instituto Atmos. 

O receio da cadeia de reciclagem no Brasil é de os preços devem cair porque as cooperativas terão que baixar os seus valores para se manterem competitivas frente ao material importado. 

“O problema desse decreto é uma questão política e comercial. É uma sinalização negativa para o mercado de que está tudo bem não priorizar o mercado interno”, diz Roger Koeppl, CEO e fundador da YouGreen, cooperativa de catadores de recicláveis.

Diferentes países oferecem subsídios para a exportação desses resíduos, afirma Tello. “O importado, que recebeu benefício no exterior, chega com um custo mais baixo e vira referência no mercado. A indústria compradora pode usar como argumento para pedir um preço mais baixo. Assim, ainda que o volume seja pequeno, ele desestrutura a cadeia da reciclagem.”

Poucas semanas após a regulamentação, cooperativas relatam queda no preço de venda de alguns materiais. A cadeia da reciclagem é bastante pulverizada no Brasil e os intermediários – como ferro-velho – usam sinalizações como essa para ajustar os preços e aumentar margens, diz Koeppl, da YouGreen. 

A surpresa do vidro

A lista de materiais que poderão ser importados inclui nomes de produtos raros no lixo das casas brasileiras, como os metais estratégicos magnésio, cobre e molibdênio. Essenciais para a indústria e com baixa oferta no mercado local, há um consenso de que a compra desses materiais é justificada. 

“No outro extremo, a inclusão do vidro, abundante no mercado brasileiro e com baixa reciclagem, me surpreendeu”, disse Augusto. Anualmente, cerca de 25% do vidro produzido no Brasil é reciclado, mas o percentual cai a depender da região do país. Uma vez que ele não “viaja”, ou seja, o custo-benefício para transportá-lo não é equilibrado, várias cooperativas sequer coletam o material. 

A indústria argumenta que há questões técnicas sobre o tipo de vidro a ser importado. Entre os associados da Abihpec, por exemplo, o vidro flint é bastante usado para os frascos de perfume e ainda pouco disponível no mercado local, diz Brasiliano. 

O decreto não discrimina quais tipos de determinado material poderão ser importados e em quais casos. 

Impacto social

O Brasil tem mais de um milhão de catadores de lixo, entre membros de cooperativas e autônomos. São eles os responsáveis por quase 90% da coleta do material reciclado no país, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). 

Associações e movimentos sociais da categoria têm pedido pela revogação imediata do decreto integralmente, pelo entendimento que ele provoca a precarização social e econômica dos trabalhadores, que já estão em posição vulnerável, e contradiz os objetivos originais da Política Nacional de Resíduos Sólidos, de 2010. 

“O tema de resíduos em países em desenvolvimento é ambiental, mas prioritariamente social, especialmente no Brasil, Argentina e Indonésia. Há uma presença de catadores de recicláveis que fazem da venda o mínimo para subsistência”, diz o fundador da cooperativa YouGreen. 

Com o preço mais baixo nas vendas, no entanto, as cooperativas devem perder poder de investimento, diz Tello. “Se elas não investem em si mesmas, não têm ganho de escala, de produtividade, nem redução do custo [do produto]. Assim, também não conseguem competir em paridade com os produtos importados. É necessário que elas tenham condições de conseguir melhorar a capacidade brasileira de tratar resíduo.”